16/11/2024
Ano 27 - Nº 1.391


 

 

ARQUIVO
IRENE SERRA





 

Irene Serra



DOCES DO SÍTIO E O VELHO TACHO DE COBRE

 

 

Temos um grupo familiar de bate-papo. Ele se faz muito útil, com o esparramar da família por várias cidades, e a saudade é muito grande para se ficar esperando datas de reencontros.

Em certo dia, postou-se um vídeo de uma fábrica de doces em Belo Horizonte. Pequena em tamanho, mas com grande produção e muito procurada por todos da região, sendo filmada no justo momento em alguns funcionários mexiam um tacho de doce de leite.

Murilo, no Rio, observador que é, comenta:

− Viram que o tacho está sobre um pneu?

Ah... doces, tacho? Motivo para engrenar conversa, que isso não nos falta.

E Murilo associa o doce de leite do vídeo ao que mamãe fazia no sítio em Teresópolis:

− Mamãe fazia um no sítio que era nessa proporção certinha mesmo: 2 l leite para 1 kg de açúcar. Eu e papai achamos num ferro-velho um tachão de cobre puro e levamos para o sítio, e montamos a "Fábrica de doces" lá. Com essa receita não tinha como dar lucro, porque o dono da loja que ela vendia é quem dava o preço, mas que era um sucesso, a lá isso era!

Melhor só mesmo o da Geralda, no fogão da casa da vovó em Corinto. Ou será porque eu tinha uns 10 anos e virou memória afetiva?

Tia Marta, irmã da minha mãe, em Belo Horizonte, completa:

− O doce de leite que Mamãe e Geralda faziam era: 4 litros de leite e "1 prato fundo" de açúcar cristal". Fervia bastante o leite previamente. Depois é que se colocava o açúcar. E mais: uma casquinha de limão no final do cozimento. Mexia-se com "colher de pau, até engrossar e aparecer o fundo do tacho de cobre... Saudades...

Murilo responde:

− Ahhh. Então por isso que não ficava tão doce, nem era tão rápido. Haja braço para mexer um tacho até secar direitinho. Essa fervura prévia do leite certamente era a experiência de usar o leite natural, não pasteurizado da época. Os antigos sabiam de tudo! Hoje em dia, a receita é: pegue uma lata de leite condensado e deixe ferver por alguns minutos. Quando você abre, até parece doce de leite.

Edgar, em Florianópolis, acrescenta:

− Além do doce de leite, aproveitava peras e pêssegos, fazia também outros doces e geleias. Finalizava a embalagem com um paninho estampado revestindo a tampa e amarrado com um lacinho de fita. Quem visse o delicado potinho na prateleira não imaginaria quantas dias de sol ardendo os pessegueiros... quantas horas de fogo ardendo o velho tacho de cobre...

Mamãe era uma abelha. Menos por gostar tanto de doces, e mais por ser laboriosa mesmo. Quanta dedicação do Murilo para fazer realidade o sonho dos pais! Construiu um galpão para instalar aquele tacho enorme! O contraste entre o tacho bruto e o potinho delicado, inevitavelmente me lembra “Recria tua vida, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces” (do poema Aninha e Suas Pedras de Cora Coralina).

As fábricas de doces agora trabalham com módulos de aço inoxidável, controlados por termostatos, não vai mais a fruta pura, adicionam-se espessantes, aceleradores enzimáticos, acidulantes e tantas coisas mais. As doceiras vão perdendo lugar para a engenharia química.

E o velho tacho de cobre? Não trabalhará mais com o fogo... assim como um certo velho monjolo não trabalha mais com a água. Estará reluzente, decorando o grande hall de algum restaurante ou hotel fazenda, projetando lembranças e recriando histórias de amor, como esta!

Dou uma pausa, observando a saudade dos "meninos", e quedo-me em silêncio, sozinha, viajando em pensamento ao sítio, longe do vai e vem da cidade, onde a magia acontecia. Tudo simples, como são as coisas boas da vida; mamãe com esmero a nos esperar, e papai aguardando os afagos iniciais para dar o abraço mais apertado e o olhar mais carinhoso, como nunca mais encontrei.

Era o tesouro perfeito! Hoje sei como tudo era especial, o amor que emanava em cada gesto - papai com uma pequena ferramenta a tirar do morro uma plantinha que eu gostara; e mamãe, com a mão fechada, a me passar entre os dedos o bombom que eu estava de olho.

Ele, uma inspiração, com sua compreensão, cultura e conhecimento. Ela, um exemplo, com sua tenacidade e resiliência.

Hoje, 16 de novembro, é seu dia, papai! Que esteja bem, acompanhado daqueles que sempre o amaram, comemorando seus 114 anos. Feliz aniversário, entoamos daqui.


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Irene Vieira Machado Serra
foniatra, editora e diretora da Revista Rio Total
RJ 
irene@revistariototal.com.br

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