16/02/2024 CooJornal nº 1.355
ARQUIVO
IRENE SERRA
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Irene Serra
SAUDADE DE UM AMIGO
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Chego em casa depois de um ano ausente. Minhas saídas até então tinham
sido intercaladas de um dia a, no máximo, três meses, e nem me lembrava onde
parentes e amigas tinham guardado as minhas coisas. A eles devo a locação
deste imóvel (acreditem: tudo em nome deles, não mexi uma palha, pois estava
hospitalizada; um primo mandava os boletos das despesas e meus irmãos
cobriam, o que continuam assumindo até hoje. Quem tem uma família assim? Deus
me abençoou em todos os aspectos.)
Aos poucos a rotina vai se formando, mas com uma
lentidão de não dar gosto
– e eu dormindo ainda grande parte do dia, não
postergação, mas cansaço mesmo.
Dou-me conta do quanto a casa está vazia, sem vida, silenciosa, e me bate fundo a saudade do meu amigo de todas as horas,
inseparável a me seguir a cada passo, sempre a me esperar à porta; pela madrugada, enquanto eu escrevia,
trocávamos papos intermináveis recheados de
abraços e aconchegos. Não ia dormir de jeito nenhum, até que eu desligasse o
computador e apagasse as luzes. Ah, queria tanto saber como você está! Não o
abandonei, tenha sempre certeza disso. Espero que não sinta minha falta, porque
dói muito, ah, como dói, a ausência. E eu só o quero feliz.
Chegou com sua irmã numa madrugada gelada e chuvosa em São Paulo. Gêmeos idênticos, difícil saber quem era um ou outro.
Ela mais alegre, catita; você observador, tímido. Lembra da fome que estavam?
Não havia mamadeira suficiente e era um esquenta-esquenta leite sem fim até
vocês dormirem. Dali umas duas horas tudo recomeçava.
Cresciam rapidamente e um defendia o outro com unhas e dentes.
Quando Dalila se foi, como choramos, inconsoláveis. Logo depois viajamos para
outra cidade, novos ares e, sozinhos, foi natural tanto nos apegarmos.
De tão pretinho,
seu pelo curto e liso chegava a azular; forte, pesadão sem ser gordo – mas quando
fazia manha e não queria sair do lugar, não havia quem o carregasse, virava chumbo
–; dentes alinhados e perfeitos, porém como ficava feio ao sorrir...
Vinte e um anos de afeto, lealdade, caminhadas matinais e vespertinas. Sua
conversa era hilária, muitas vezes não a entendia. Aprendemos a nos conhecer
pelo olhar, e como eu me ressentia quando este transmitia tristeza. Aos poucos seus
pelos foram branqueando, você ficando mais alquebrado e um antipático reumatismo o impedindo de correr e saltar. Essa é a
última lembrança que tenho de você: expressão de dor, abandono, solidão...
Morreu sozinho, com as patinhas envolvendo sua cabeça.
Como
teria se sentido? Perdoe-me, querido Sansão, não poder acompanhá-lo até o fim nem lhe ter dado as mãos e
murmurar “estou aqui, para sempre sua e você meu”.
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Irene Vieira Machado Serra
foniatra, editora da Revista Rio Total
RJ
irene@revistariototal.com.br
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