16/10/2021
Ano 24
Número 1.244

 

 

ARQUIVO
IRENE SERRA





 

Irene Serra



NOITE INSONE
 

 

Frio de rachar. A cama parece enorme, e é. Vira de um lado para o outro consecutivamente. Onde está este sono que não aparece? Levanta, esquenta uma caneca de leite. Ah, delícia! Agora dorme, com certeza. O frio aumenta. Fecha a janela deixando apenas um espaço mínimo aberto. Coloca luvas, olha o relógio e começa a perder a paciência. As horas não passam! Duas, duas e dez, duas e vinte... Em vez de olhar as horas resolve contar carneirinhos. Mas estes estão tão magrinhos que pulam a cerca rapidamente e ela perde a contagem. Elefantes! Boa ideia, elefantes são enormes e andam devagar. Vamos recomeçar: um elefante, dois elefantes, três elefantes. Não deu certo. A Galinha Pintadinha tem razão: eles incomodam demais e ela está só; se tivesse muita gente, quem sabe?

Lembra do amigo Pedro, médico cardiologista no Rio, que em certa ocasião lhe indicou um fitoterápico para momentos assim. Qual é mesmo o nome? São quase três horas, não dá para sair, talvez um entregador. Já nem adianta vasculhar na memória, pois começa a chover, chuvarada forte, e o silêncio total na rua é substituído pelo ecoar no teto da casa ao lado. Isso a incomoda mais ainda. Passa, noite! Passa!

Oba, pediu e aconteceu? Começa a entrar claridade em seu quarto. Distingue a cômoda que herdou de uma tia, madeira maciça, linda. Gosta de ficar olhando essas relíquias que foi ganhando, com carinho, por parte de parentes, sem nada lhes pedir. Parece que amigos adivinham o quanto lhe faz bem esse vínculo.

Mas o que é isso? Escureceu de novo? Não pode ser! Levanta em um salto. Lá na frente está a vizinha acabando de fechar sua janela. Que decepção, era só uma luz acesa por instantes.

Sente-se triste, abandonada. Quer carinho, quer que a noite acabe. Tem pavor de morrer sozinha e ninguém dar por sua falta. Em que estado de decomposição a encontrariam? Se não tem jeito, pensa em gastar o tempo cantarolando baixinho, mesmo sem música. Quem sabe a melodia a embala? Do que gosta? Vem-lhe à mente Nat King Cole em Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me... Epa, não é o caminho certo a enveredar. Nada de deprê. Dá-lhe Guantanamera, Guajira Guantanamera... Ainda não. Vamos alegrar mais um pouco?

Seus pensamentos são interrompidos com o bater da porta do banheiro. São três e meia. Instantaneamente pensa: “Que bom que Didi chegou em casa, posso dormir sossegada”. Ouve nitidamente a voz da irmã. Mas a realidade lhe dá um tapa no rosto.

E dormir que nada, volta a se virar na cama. Cansada, sabe que tem um dia de trabalho pela frente e essa falta de sono lhe será cobrada a seguir. Puxa os cobertores até o pescoço, impaciente, e tem a sensação que lhe seguram a mão. Murmura “Mamãe?”. Sem resposta, mas sentindo seu calor, olha para o lado e distingue seu corpo deitado de lado, joelhos fletidos como sempre gostou, e ainda a lhe segurar a mão firmemente,  com carinho, trazendo-lhe confiança. Quis conversar, mas não conseguiu, não via seu rosto, só o lençol branco com que ela se cobria.

Em pouco adormece, sem frio, sem medo...

 

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Irene Vieira Machado Serra
foniatra, editora da Revista Rio Total
RJ 
irene@revistariototal.com.br

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