Irene Serra
TROPEL. ATÉ QUANDO?
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Começamos a ouvir seu rumor à distância. Rapidamente vem se aproximando e
o som como que passa por cima de tudo, esmagando-nos. Vem e vai com uma freqüência tal,
que quase podemos dizer o caminho que percorre. E essa continuidade, sem
descanso, traz inquietação e quase desespero. Será uma manada de búfalos,
fugindo de algozes caçadores? Cavalos alazão puro-sangue, excitados com
o cio da fêmea? Ou mesmo carroças da época da colonização do oeste
norte-americano, competindo para serem as primeiras a tomarem posse do
terreno?
Quando se afasta, temos a nítida impressão de estarmos em meio à poeira,
abanando xales e chapéus, cobrindo o rosto com lenços.
A velha, quase caduca, exclama: - Será o fim do mundo?!
A criança, sempre pronta a novas brincadeiras, grita: - Vamos, também,
brincar de mocinho e bandido?
O adolescente, massacrado com as recentes catástrofes do Rio,
pergunta: - O morro está descendo para o asfalto?
E o tropel continua diuturnamente. Com o sol claro, movimento nas ruas,
barulhos corriqueiros da vida de uma grande cidade, conseguimos aturá-lo.
Mas, madrugada a dentro, é uma agonia sem limites, ainda mais que,
geralmente, vêm acompanhados de música, TV, vozes e sons não
abafados. Mas, nesta madrugada recente, a sinfonia foi completa com rec
rec rec, rich rich rich, rec rec rec, como se estivessem serrando,
lixando, consertando algo. Um olhar ao relógio mostra que passa de meia-noite.
Outro olhar, ainda é uma e meia... E assim vai até a exaustão, a noite
tornando-se lenta, angustiante.
O despertador toca. São 5h e o silêncio agora impera, mostrando que a
caravana descansa. Para os demais, é um novo dia de trabalho! Um dia
certamente improdutivo, sem realizações, com a marca do cansaço de mais
uma noite mal dormida, a saúde se consumindo! Não adianta brigar com o
travesseiro, pois não se pode atrasar o trabalho, necessário para
assegurar um lar tranqüilo e onde se possa descansar. Tranqüilidade?
Descanso? Será isso ainda possível?
Após a labuta exaustiva, inúmeras falhas de atenção e memória, novamente o
retorno a casa. Logo as aves encontram o abrigo das árvores para se
protegerem de outra noite fria e chuvosa, cães e gatos vão se aconchegando
em almofadas e tapetes. Em meio à escuridão, brilha a esperança de uma
madrugada silente. Sonho vão! O tropel recomeça, com
recrudescente fúria, seu ir e vir.
Até quando?
(21 de maio/2004)
CooJornal no 369
Irene Vieira Machado Serra
professora,
foniatra, psicóloga, editora da Revista Rio Total
RJ
irene@riototal.com.br