Em 2003 desabafei este texto. Não durou muito, em 2005 Mariazinha se foi.
Em 28 de abril, dia de seu aniversário, a saudade aperta ainda mais.
Minha babá querida,
a companheira de todas as horas, a quem sinto que
falhei quando mais precisava.
Por que se torna tão difícil, às vezes, dizer
que amamos, que sentimos falta de alguém?
A morte
espreita. Ouço seu ronco e sei que nada posso fazer a não ser dar um abraço,
um carinho, passar as mãos pelos crespos cabelos da pessoa que respira com
dificuldade ao meu lado. Vejo seu raro sorriso ao lhe pedir, hoje, um beijo,
como se ainda eu criança fosse, sentindo seu colo amigo e protetor. E ela
também, criança mostrando-se cada vez mais em seu corpo miúdo e magro quase
centenário, olhar longínquo, medo permanente em meio aos devaneios e
ausências.
Gênio difícil – o de todos nós. Palavras duras e amargas,
impaciência até mesmo nos momentos em que sentimos sua incapacidade de
compreensão e os reflexos já murchos e lentos. Maldita língua que não se cala,
apesar de todo o amor existente!
Com o tempo ela foi se tornando mais
amarga, muda... Mas quem assim não agiria ao se sentir carente de afeto, de
uma palavra amiga, tão só? Não me lembro de alguém que tivesse tido muito
tempo para ouvir suas reminiscências, algumas bobagens ou jogar conversa fora,
nesta vida tão agitada que nós mesmos construímos. Da pia para o tanque, das
compras para o quarto, ei-la um cão de guarda fiel que quase não recebia
afago. E nós, a família que ela adotou desde sempre, inúmeras vezes
indiferentes ao seu silêncio sofrido!
Amando, alcei novos voos e não a
carreguei em minhas asas. Não mais recortes de Cashmere Bouquet das velhas
revistas, sentada no chão da cozinha, olhando-a trabalhar responsável e
confiante, e ela a fingir que não me via. Não mais lugar para histórias de
fadas, confissões pueris, brincadeiras de panelinhas, o dengo a qualquer hora.
Não mais tudo. Não mais nada. E ela, em seu canto, quedou-se na espera.
Apesar de há algum tempo estar morando comigo, sei que não é só isso que
quer; ela precisa de minha companhia incondicional como filha, e isso não mais
lhe dou, o famoso "agora não tenho tempo; fica para depois".
Seguro sua
mão, que já não tem força. Converso baixinho, sabendo que pouco me ouve, mas
na esperança de que minha voz a acalme e durma serena. O gato aconchegado em
suas pernas dorme de há muito, como a lhe dar o ritmo da respiração. Até
quando terá forças para lutar? E fico a contemplá-la, em angustiada prece, a
lhe pedir perdão pela felicidade que não lhe dei, só recebi!
(Publicado
no CooJornal em 30 de outubro/2003)
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