16/10/2001
ARQUIVO
IRENE SERRA
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Irene Serra
TUDO POR CAUSA DE UMA BICICLETA
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Observo os
meninos brincando no play, o pai insistindo com o mais velho que daquele jeito
ele nunca iria aprender a andar de bicicleta e dá-lhe gritaria de cá e choro de
lá.
As imagens, então, chegam nítidas, apesar de decorridos mais de 40
anos, numa recordação que teima em se fazer presente... é como se lá embaixo
estivesse um grupo de crianças - que exagero! São apenas três irmãos de idades
muito próximas e um outro temporão, o que por si só já fazia o burburinho da
conversa parecer uma algazarra.
Sempre, ainda início dezembro, começavam
os preparativos para viajar e a alegria dos planos tomava conta de todos. O que
levar na mala? Roupas e brinquedos não cabiam naquela profusão escolhida. Era
hora do irmão mais ponderado considerar que lá para onde iam não precisavam de
quase nada... A festa estava exatamente em colocar os pés na enxurrada, andar no
meio da rua (aquela altura já de paralelepípedos, mas onde ainda não havia
carros passando), pular de casa em casa e ver o que cada primo estava fazendo ou
as tias servindo à refeição - evidentemente aproveitando tudo de que gostavam,
com o ar mais singelo do mundo, como se fosse apenas coincidência a "passadinha"
naquele momento. Ah, inocência, como se todos não soubessem dessa tramoia
infantil!
Enfim, as férias chegavam e tudo ia acontecer de novo. A viagem
longa, um pouco cansativa, parecia que levava apenas alguns minutos ante a visão
da torre da igreja. Quantos abraços, perguntas e o inevitável "vocês não querem
tomar um bom banho?" Banho? Quem estava pensando em perder tempo tomando banho?
Cada um já fora alojado em casa diferente e nada mais tinha importância, só a
felicidade de ali estarem.
O Natal se anunciava na agitação dos
preparativos. Cada casa tinha seu presépio, mas um deles, que encanto! Era a
fantasia se misturando aos anõezinhos que ficavam no jardim, como se eles fossem
convidados para a ceia.
Acolá, um tio bonitão esperando a passagem da
linha de trem ser liberada para se encontrar com a amada, tinha de suportar o
grupo fazendo cantoria e pulando ao lado do carro. Paz, ele queria paz! Mas
cedia aos apelos para "dançar o baião", com todos encarapitados em seu
conversível. Certamente chegava atrasado aos seus compromissos, mas nós,
descompromissados, disso não tomávamos consciência.
Volto minha atenção
ao play, devido a um novo choro, prontificando-me a treinar com o menino seu
primeiro passeio de bicicleta. Seus olhinhos tornam a me levar à criança,
criança feliz que fui outrora, que tivera a sorte de muito andar de bicicleta. E
ali, segurando um selim, relembro este meu aprendizado.
Lá estava uma
menina às voltas com aquela máquina que teimava em cair para o lado, ralando
seus joelhos nas pedrinhas do chão. Até que chega um tio - este era muito
jovem, não parecia tio, não - e vem lhe mostrar o que fazer. "Olhe para a
frente, sempre em frente, estou segurando você, não tenha medo". E lá iam,
passando pela farmácia, fazendo a volta mais adiante e seguindo até o armazém. E
pedala, pedala. De vez em quando, uma olhadinha para trás e lá estava o tio
segurando firme, agora correndo e não mais andando, a repetir "Olhe para a
frente, sempre em frente..." Quanto tempo assim ficavam? Quão cansado ele
estaria? Isto nunca foi dito ou perguntado! Até que um dia, ao olhar para trás,
o vê lá longe balançando as mãos, gritando a sorrir: "Você conseguiu! Olhe para
a frente..."
Foi o mais importante presente de Natal que recebi!
E agora o repasso: incentivar alguém a desafiar a si mesmo! Sei que é o melhor
de mim que eu poderia dar e ouço-me a repetir, como tantas vezes ouvi: "Olhe
para a frente, sempre em frente..."
Não, nada estou dando! Eu é quem
ganha, novamente, mais um outro presente valioso: a lembrança da infância em
meio à melhor família que alguém poderia ter!
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Irene Vieira Machado Serra
foniatra, editora da Revista Rio Total
RJ
irene@revistariototal.com.br
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