
16/12/2022
Ano 25 Número 1.298

FREI BETTO ARQUIVO
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Frei Betto
CARTÃO DE NATAL
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Feliz Natal a quem
cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e coleciona no espírito as
aquarelas do arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias interiores e não
temem as curvas abissais da oração.
Feliz Natal aos que reverenciam o
silêncio como matéria-prima do amor e arrancam das cordas da dor melódicas
esperanças. Também aos que se recostam em leitos de hortênsias e bordam, com
os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura.
Feliz Natal
aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da
rosa dos ventos e levam no peito a saudade do futuro. Também aos que semeiam
indignações, mergulham todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto
da vida, identificam a porta que os sentidos não veem e a razão não alcança.
Feliz Natal aos que dançam embalados pelos próprios sonhos e nunca
dizem sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto da vingança e
jamais pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o ódio destrói primeiro a
quem odeia.
Feliz Natal a quem acorda, todas as manhãs, a criança
adormecida em si. E aos artífices da alegria que, no calor da dúvida, dão
linha à manivela da fé.
Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas
pelas ruas a fim de atirá-los no lixo do olvido e guardam recatados os seus
olhos no recanto da sobriedade. A quem, diante do espelho, descobre-se belo na
face do próximo.
Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do
horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que
suprimem a letra erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.
Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios.
Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores
e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a
quem declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável.
Feliz
Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia que dormem
acobertados pela compaixão. E a quem não se deixa seduzir pelo perfume das
alturas e nem escala os picos em que os abutres chocam ovos.
Feliz
Natal a quem, no leito de núpcias, promove despudorada liturgia eucarística e
transubstancia o corpo em copo para inundá-lo do vinho embriagador da perda de
si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor não é
eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.
Feliz Natal aos que
repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à mesa feita com as
tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de cumplicidades.
Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão da vida
as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários de mistério e se
embebedam de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica. E a todos que,
com o rosto lavado das maquiagens de Narciso, dobram os joelhos à dignidade
dos carvoeiros.
Queira Deus que renasçamos com o coração desenhado em
forma de presépio para aconchegar o Menino que embala o nosso esperançar.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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