
16/04/2022
Ano 25 Número 1.268

FREI BETTO ARQUIVO
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Frei Betto
A CONDENAÇÃO DE JESUS
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Entramos na Semana Santa, quando se comemora a prisão, morte e
ressurreição de Jesus, episódios centrais para a fé de todos nós, cristãos.
Para quem tem fé, Jesus é o Salvador, o Filho de Deus presente entre nós. Para
o historiador, um profeta apocalíptico que percorreu a Palestina na primeira
metade do século I, defendeu os direitos dos pobres, criticou a ocupação do
Império Romano, denunciou a religião opressiva do Templo de Jerusalém e morreu
na cruz.
Desde o século XVIII se intensificou o debate sobre o Jesus
histórico. O filósofo alemão Hermann Reimarus inaugurou os estudos não
confessionais sobre a vida de Jesus. Bauer, Couchoud, Drews e, mais tarde, os
partidos comunistas, defenderam que ele jamais existiu. Tal conclusão foi
desprezada pela quase totalidade da crítica, e Bultmann disse que nem valia a
pena discutir o assunto. Há mais evidências da existência de Jesus do que a de
Sócrates e, no entanto, não se coloca em dúvida o que Platão nos transmitiu a
respeito do famoso filósofo.
Do ponto de vista histórico, não há
muitas certezas a respeito de Jesus, exceto o que nos informam o Novo
Testamento, em especial os quatro evangelhos, e alguns autores judeus e
romanos, como Flávio Josefo. E ainda hoje perdura uma interrogação: quem foi o
responsável por sua morte? Infelizmente, a primeira resposta da Igreja foi
culpar os judeus. Preconceito infundado que favoreceu o antissemitismo. E,
ainda hoje, malha-se Judas – cujo nome é associado ao judaísmo – no sábado de
Aleluia.
A leitura crítica do Novo Testamento nasceu na Alemanha, se
estendeu pela França, com Renan, Loisy, Goguel e Guignebert e, em seguida,
para o Reino Unido e os Estados Unidos, onde, ainda hoje, a discussão é
calorosa. Os judeus também participaram com Klausner e Montefiore.
Três teses se destacam como principais. A primeira, que os verdadeiros
culpados foram os judeus. A segunda, que foram os romanos. A terceira, que a
culpa foi de ambos: o Sinédrio – a suprema corte religiosa e política do
judaísmo no século I -, como denunciante e acusador, e o interventor romano, o
governador Pôncio Pilatos, como juiz e executor.
Ora, hoje em dia a
Igreja admite que os Evangelhos não são livros de história, nem registros
judiciais. Por isso, é inútil pretender encontrar neles um relato preciso do
julgamento de Jesus. Na verdade, os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) se
contradizem em vários pontos, como nos relatos dos dois ladrões crucificados
ao lado de Jesus, do sonho da mulher de Pilatos e da interferência de Herodes
Antipas, governador da Galileia.
Contudo, Mateus, Marcos e Lucas
concordam em um ponto: Jesus foi preso à noite por uma turba de judeus, que o
levou imediatamente para o Sinédrio. Para Lucas, o prisioneiro foi conduzido à
casa de Caifás, o Sumo Sacerdote. João acrescenta em seu evangelho que, em
apoio aos guardas do Templo, havia uma guarnição romana. Ou seja, os romanos
participaram da captura, já que sobre o Nazareno pesava a suspeita de sedição.
Afinal, dentro do reino de César ele ousara anunciar outro reino possível – o
de Deus, baseado em novas relações pessoais e sociais - o amor e a partilha
dos bens.
Naquela madrugada, o prisioneiro político compareceu à
presença de Pilatos para ser julgado. Isso significa que o governador romano
já tinha sido avisado e estava decidido a processá-lo.
Tais
circunstâncias induziram muitos autores a concluir que a denúncia teria
partido das autoridades judaicas, alarmadas com a atividade do pregador
itinerante, que já se tornara conhecido ao expulsar os vendilhões do Templo.
Pela ótica do Sinédrio, pesava sobre Jesus a acusação de blasfêmia, já
que ousara se autoproclamar Messias. Pela ótica dos romanos, de crime de
lesa-majestade, já que teria se arvorado em rei dos judeus. Enquanto a
primeira acusação pouco importava aos judeus, a segunda merecia a pena de
morte na cruz. Embora os evangelhos tendam a ressaltar a culpa dos sacerdotes
e até mesmo dos judeus, e atenuar o papel de Pilatos, a sentença final foi
proferida pelo interventor imperial.
No século passado, o Concílio
Vaticano II, após longa discussão, aboliu a infâmia de acusar o povo judeu de
deicídio. O que diz, entretanto, o julgamento da história? Ora, saber algo de
preciso sobre o Jesus histórico é quase impossível, como salientou, há um
século, o renomado médico e teólogo Albert Schweitzer, que tudo abandonou na
Alemanha para cuidar, na África, de pacientes muito pobres.
As certezas
que temos sobre o Jesus histórico são muito poucas. E pelo que sabemos de sua
morte só se pode concluir, com o historiador das religiões, o francês Charles
Guignebert, que o Nazareno foi submetido a um julgamento romano, por uma
acusação romana, condenado por um juiz romano a uma pena exclusivamente
romana, e afixada sobre sua cabeça uma sentença romana ofensiva aos judeus:
Iesus Nazarenus Rex Iudeorum (Jesus Nazareno, rei dos judeus). Assim, do ponto
de vista puramente histórico a culpa do assassinato de Jesus foi romana.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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