
16/03/2022
Ano 25 Número 1.264

FREI BETTO ARQUIVO
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Frei Betto
MUNDO À DERIVA
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Até meados do século XX, a
mobilidade humana era muito restrita. As pessoas mantinham vínculos
comunitários mais estreitos. Relacionavam-se, por toda a vida, com familiares,
amigos, frequentadores da mesma igreja ou do mesmo clube. Se viagens ocorriam,
eram periódicas, e quase nunca para lugares muito distantes dos limites da
cidade. Avós, pais e irmãos moravam, quase todos, próximos uns dos outros.
Isso reforçava os elos comunitários, a autoidentidade, o senso de agregação.
Os laços de sangue falavam mais alto que o padrão de vida ou o nível de
cultura.
Tudo isso ruiu com a mobilidade geográfica facilitada pela
pós-modernidade. O barco que conduzia o clã familiar congregado foi de
encontro aos penhascos da sociedade consumista e se estilhaçou. Todos ficaram
à deriva. Hoje, nessa enorme gaiola de cimento e ferro, chamada prédio de
apartamentos, o vizinho de porta nada sabe a respeito de quem mora ao lado.
Estão todos condenados à perda de identidade, ao anonimato, à estranheza.
Enquanto na “aldeia” os olhares eram de familiaridade e acolhimento, agora são
de suspeita e medo. Como diria Sartre, o outro é, potencialmente, o inferno.
Como preservar a autoestima se a pessoa não se sente estimada?
Soma-se a
isso um novo fator que agrava a ansiedade, a solidão, as atitudes narcísicas:
a aldeia digital. Assim como as pessoas buscam grupos com os quais se
identificam (clube, igreja, associação, núcleo cultural etc.), elas também se
inserem em vários nichos internáuticos no esforço de se afirmarem socialmente.
O ser humano não pode prescindir do olhar benfazejo do outro. Mas o espaço
cibernético é substancialmente narcísico. A pessoa posta algo – mensagem,
foto, meme etc. – como quem joga um peixe no lago cercado de pescadores.
Ansiosa, quer saber quem fisgou a sua postagem, se interagiu e de que maneira.
E mergulha no círculo vicioso da digitação constante.
Se no espaço urbano,
onde os laços familiares estão geograficamente distanciados, prevalece a
desconfiança, no virtual isso se torna mais acentuado. Como no paradoxo do
gato de Schrodinger, o outro com quem você se relaciona pode ser e pode não
ser ele. E, como é natural, cada um busca ser reconhecido dentro daquela
bolha. Quando alguém posta é também em busca de si mesmo. O smartphone
funciona como um espelho, no qual bilhões esperam ver a sua imagem melhorada.
E o retorno, muitas vezes, é a desconstrução de quem postou. Ninguém ingressa
na arena de boxe para presenciar a luta, e sim para esmurrar o outro até que
ele seja aniquilado. E isso é mais fácil quando o outro é um estranho. O
outro, nessa arena virtual, é sempre um concorrente, e não um parceiro.
Daí a usina do ódio, das fake news, de tudo que faça um sobressair sobre os
outros. A emoção prevalece sobre a razão. E a imposição sobre o diálogo. Não
se procura ter parceiros e, sim, seguidores. Milhões de pequenos ditadores
emitem a sua verdade sobre o mundo, ainda que seja uma clamorosa mentira, e
assim fuzilam virtualmente todos que se lhe opõem. Um exemplo dessa
tendência de isolamento e agressividade é a crescente venda de veículos
utilitários (SUVs), próprios para zonas rurais, nas classes altas de áreas
urbanas. Além de não serem adequados para trafegarem na cidade, criam nos
passageiros uma sensação de proteção e poder. Muitos adicionam à marca modelos
com expressões típicas de conflito e belicismo: Defender (defensor),
Raider (agressor), Crossfire (fogo cruzado), Tracker (perseguidor),
Compass
(renegado), Kicks (chutes).
Convém escutar os sábios: “É chegado o momento,
não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e
clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar
e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o
qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra” (Rubens
Alves: “A Escutatória”).
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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