
01/01/2022
Ano 24 Número 1.254

FREI BETTO ARQUIVO
|
Frei Betto
FELIZ ANO NOVO
|
 |
Quero um Ano Novo onde, se Deus quiser, todas as crianças, ao ligarem seus
apetrechos eletrônicos, recebam um banho de Mozart, Pixinguinha e Noel Rosa;
aprendam a diferença entre impressionistas e expressionistas; vejam
espetáculos que reconstituem a Balaiada, a Confederação do Equador e a Guerra
dos Emboabas; e durmam após fazer suas orações. Quero um Ano Novo em que,
no campo, todos tenham seu pedaço de terra, onde vicejem laranjas e alfaces, e
voejem bem-te-vis entre vacas leiteiras. Na cidade, um teto sob o qual reluz o
fogão de panelas cheias, a sala atapetada por remendos coloridos, a foto
colorida do casal exposta em moldura oval sobre o sofá. Espero um Ano Novo
em que as igrejas abram portas ao silêncio do coração, o órgão sussurre o
cantar dos anjos, a Bíblia seja repartida como pão. A fé, de mãos dadas com a
justiça, faça com que o céu deixe de concentrar o olhar daqueles aos quais é
negada a felicidade nesta terra. Um Ano Novo Feliz com casais ociosos na
arte de amar, o lar recendendo a perfume, os filhos contemplando o rosto
apaixonado dos pais, a família tão entretida no diálogo que nem se dá conta de
que a TV e os celulares são aparelhos mudos e cegos num canto da sala.
Desejo um Ano Novo em que os sonhos libertários sejam tão fortes que os
jovens, com o coração a pulsar ideais, não recorram à química das drogas, não
temam o futuro nem se expressem em dialetos ininteligíveis. E que compareçam
às urnas em outubro para resgatar as políticas públicas de proteção social, a
redução da desigualdade social, a autoestima do povo brasileiro e a soberania
nacional.
Espero um Ano Novo em que cada um de nós evite alfinetar rancores
nas dobras do coração e lave as paredes da memória de iras e mágoas; não
aposte corrida com o tempo nem marque a velocidade do tempo pelos batimentos
cardíacos. Um Ano Novo para saborear a brevidade da vida como se ela fosse
perene, em companhia de ourives de encantos.
Quero um Ano Novo em que a
cada um seja assegurado o direito do emprego, a honra do salário digno, as
condições humanas de trabalho, as potencialidades da profissão e a alegria da
vocação. Rogo por um Ano Novo em que a polícia seja conhecida pelas vidas
que protege e não pelos assassinatos que comete; os presos reeducados para a
vida social; e que os pobres logrem repor nos olhos da Justiça a tarja da
cegueira que lhe imprime isenção. Um Ano Novo sem políticos mentirosos,
autoridades arrogantes, funcionários corruptos, bajuladores de toda espécie.
Livre de arroubos infantis, seja a política a multiplicação dos pães sem
milagres, dever de uns e direito de todos. Espero um Ano Novo em que as
cidades voltem a ter praças arborizadas; as praças, bancos acolhedores; os
bancos, cidadãos entregues ao sadio ócio de contemplar a natureza, ouvir no
silêncio a voz de Deus e festejar com os amigos as minudências da vida - um
leque de memórias, um jogo de cartas, o riso aberto por aquele que se destaca
como o melhor contador de anedotas. Desejo um Ano Novo em que o homem
jamais humilhe a mulher; a professora de cidadania não atire papel no chão; as
crianças cedam o lugar aos mais velhos; e a distância entre o público e o
privado seja espelhada pela transparência. Quero um Ano Novo de livros
saboreados como pipoca, o corpo menos entupido de gorduras, a mente livre do
estresse, o espírito matriculado num corpo de baile ao som dos mistérios mais
profundos. Espero um Ano Novo cujo principal evento seja a inauguração do
Salão da Pessoa, onde se apresentem alternativas para que nunca mais um ser
humano se sinta ameaçado pela miséria ou privado de pão, paz, saúde, educação,
cultura e prazer. Um Ano Novo em que a competitividade ceda lugar à
solidariedade; a acumulação à partilha; a ambição à meditação; a agressão ao
respeito; a idolatria ao dinheiro ao espírito das Bem-Aventuranças. Aspiro
a um Ano Novo de pássaros orquestrados pela aurora, rios desnudados pela
transparência das águas, pulmões exultantes de ar puro e mesa farta de
alimentos despoluídos. Um Ano Novo que seja o último da Era da Fome.
Desejo um Feliz Ano Novo de muita saúde e paz aos meus pacientes leitores - os
que concordam e também os que discordam. Rogo por um Ano Novo que jamais
fique velho, assim como os carvalhos que nos dão sombra, a filosofia dos
gregos, a luz do Sol, a sabedoria de Jó, o esplendor das montanhas de Minas, a
literatura de Machado e Rosa. Desejo um Ano Novo tão novo que traga a
impressão de que tudo renasce: o dia, a exuberância do mar, a esperança e a
nossa capacidade de amar. Exceto o que no passado nos fez menos belos,
generosos e solidários.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação eletrônico ou impresso sem autorização do
autor.

|
|