
16/11/2021
Ano 24 Número 1.248

FREI BETTO ARQUIVO
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Frei Betto
O caminho da história
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Na segunda-feira, Cléofas e Tamez, casal de discípulos, dirigem-se para o
povoado de Emaús, a onze quilômetros de Jerusalém. Têm o semblante triste.
Conversam sobre o trágico desfecho da atuação de Jesus.
À saída da
Cidade Santa, um forasteiro segue na mesma direção. Aos poucos, ombreia com
eles e pergunta: O que conversais?
Cléofas reflui o passo: És o único
em Jerusalém que ignoras o sucedido nesses dias?
O que aconteceu?
Os chefes dos sacerdotes entregaram Jesus, o Nazareno, para ser condenado
à morte e o crucificaram. Minha mãe foi testemunha de tudo que ele padeceu.
O intruso mostra-se intrigado: Jesus? Quem era ele?
Um profeta
poderoso em obras e palavras, diante de Deus e do povo, diz Tamez. Esperávamos
que fosse libertar Israel, frisa Cléofas; até minha mãe tornou-se discípula
dele.
E quando tudo isso ocorreu?
Há três dias, informa Tamez.
Quer dizer que ele vos decepcionou? provoca o estranho.
É verdade,
admite Cléofas, que algumas mulheres do nosso grupo nos assustaram. Ontem,
muito cedo, foram ao túmulo e não encontraram o corpo. Retornaram com a
notícia de que tinham visto um anjo que assegurara que ele está vivo. Sabe
como são as mulheres, enxergam mais que os olhos!
Tamez encara o marido
com olhar severo.
Ele prossegue: Alguns dos nossos foram ao sepulcro
conferir e encontraram as coisas tal como as mulheres haviam dito e o corpo
não estava lá.
O forasteiro muda de tom: Insensatos e lentos de
coração! Como duvidais do que os profetas anunciaram? Não se previa que o
Messias passaria por tudo isso?
Cléofas espanta-se: Quer dizer que
também estás a par do que ocorreu?
Sim, mas queria avaliar vossa fé,
justifica-se. Não sabeis que, há cerca de quinze séculos, Deus se revela ao
nosso povo? Manifestou-se a Moisés na sarça que ardia em fogo e não se
consumia, quando ele pastoreava as ovelhas de seu sogro Jetro no monte Horeb,
e fez dele um libertador. Deu-lhe sabedoria para enfrentar o faraó e coragem
para conduzir o povo no deserto ao longo de quarenta anos. Também no Horeb,
expôs-se a Elias, não no furacão que rachou as montanhas, nem no terremoto ou
nas chamas, mas na brisa suave. Quem sabe não compreendestes os sinais, por
esperar tremores de terra e nuvens de fogo, quando tudo se resume na brisa que
sopra do Gólgota?
Revelou-se a Isaías pelos anjos que, no Templo,
abriram seus lábios com brasas incandescentes. Também a Jeremias, por um ramo
de amendoeira e uma panela fervendo. A Daniel expressou-se em sonhos e visões.
Javé manifestou-se até pela prostituição da mulher de Oséias. É um fogo
abrasador, um Javé ciumento ou um Deus que se apaixona como um homem que
jamais trai a sua amada, ainda que ela o rejeite e se entregue a braços e
abraços fortuitos. E, antes de habitar entre nós, Deus falou-nos por João
Batista, que preparou os caminhos do Filho do Homem. Quando o Invisível se
tornou visível, o Filho do Homem introduziu-nos na adoração em espírito e
verdade. Por que, entre tanta coerência, haveria ele de mentir?
O
casal julga que o viajante é um escriba simpatizante do nazareno.
Cléofas objeta: Sim, teu resgate de nossa história ajuda-nos a reatar os elos
da promessa de Javé. É espantoso que Deus seja Jesus de Nazaré!
Tamez
acrescenta: Isso é terrivelmente próximo a nós e, no entanto, como as amarras
do egoísmo nos impedem de ficar próximos a ele!
Jesus, observa Cléofas,
mudou a imagem de Deus que havia em minha cabeça.
O desconhecido
concorda: Agora as Escrituras devem ser lidas a partir do Nazareno.
Sim, admite Tamez, não é Javé quem nos revela Jesus, é Jesus quem nos revela
Deus.
A mulher não perde a oportunidade de levantar uma questão que
suscita a curiosidade dos israelitas: Na sua opinião, qual é o nome de Javé?
É Amor, responde o homem.
Ao se aproximarem de Emaús, o forasteiro
faz menção de ir adiante. Animados pela conversa, Cléofas e Tamez insistem:
Permanece conosco; a tarde já se faz noite.
Não, não posso, devo
seguir, diz ele.
Cléofas não se intimida: Se é problema de dinheiro,
não se preocupe; temos o bastante para pagar-lhe a hospedaria.
Decide,
então, ficar.
À hora do jantar, à mesa diante de um cordeiro assado
temperado com manjericão, o desconhecido toma a iniciativa, de acordo com o
costume judaico: segura o pão, abençoa-o, parte-o, tempera-o com sal e
distribui entre os três.
Os olhos deles se abrem - reconhecem Jesus. No
mesmo instante, ele fica invisível.
Emocionados, Cléofas e Tamez
comentam entre si: Não ardia o nosso coração quando ele nos explicava as
Escrituras!
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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