
01/08/2021
Ano 24 - Número 1.230

FREI BETTO ARQUIVO

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Frei Betto
DEMOCRACIA CULTURAL
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O homem e a mulher são os únicos seres
vivos que se contrapõem à natureza. Os demais, das abelhas arquitetas aos
macacos africanos que protegem seus recursos de sobrevivência, são todos
determinados pela natureza. Esse distanciamento humano frente ao mundo natural
faz a realidade revestir-se de simbolismo e produz a emergência transcendental
do imaginário.
Do interesse pelo fogo produzido pelo relâmpago nasce o
conhecimento que desperta a consciência. Voltada sobre si mesma, a consciência
humana sabe que sabe, enquanto os animais sabem, mas ignoram a reflexão.
Através do símbolo e do significado, o ser humano se relaciona com a natureza,
consigo mesmo, com os semelhantes e com Deus.
Nasce a cultura, o toque
humano que faz do natural, arte. A vida social ganha contornos definidos e
explicações categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da natureza
chega-se às armas que permitem a imposição de um grupo cultural sobre o outro.
Porém, cultura é identidade e, portanto, resistência. Mesmo assim, a
absolutização de sistemas ideológicos oferece o paraíso, induzindo o dominado
a sentir-se excluído por não pensar pela cabeça alheia.
No Brasil
colônia, os métodos de catequese cristã introduziam entre os indígenas o vírus
da desagregação e, hoje, os donos dos garimpos, das madeireiras e o governo
perguntam perplexos por que os povos indígenas necessitam de tanta terra se
nada produzem. Os neopentecostais atacam os umbandistas e certos setores da
Igreja cristã olham com solene desprezo o candomblé, como se seus fiéis ainda
estivessem naquele estágio primitivo da consciência religiosa que não lhes
permite desfrutar a beleza do canto gregoriano ou a ortodoxia teológica dos
livros de Ratzinger.
A queda dos governos dos países socialistas do
Leste europeu assinala, não o fim do socialismo, como propaga a mídia
capitalista, mas sim da absolutização de sistemas ideológicos. Desabam com a
herança estalinista todas as estratégias de hegemonização da cultura, e a
própria ideia de "evolução cultural". Não há culturas superiores, há culturas
distintas, social e historicamente complementares. Agonizam as versões
totalizadoras em todos os terrenos da produção de sentido - político,
econômico e religioso.
Quem pretender ignorar os sinais dos tempos
terá de apelar ao autoritarismo para infundir temor e terror. Sabemos agora
que mesmo na América Latina não há uma cultura única, mas uma multiplicidade
de culturas - indígena, negra, branca, sincrética - que se explicam por seus
próprios fatores internos. Essa polissemia de sistemas de sentido é uma
riqueza, embora ameace o poder daqueles que imaginavam restaurar a
uniformização medieval.
A mais de 500 anos da chegada de Colombo às
Américas - uma invasão genocida que alguns chamam de "encontro de culturas" -
convém relembrar esses conceitos antropológicos. E agora a democracia impregna
também a cultura. Cada homem e mulher, grupo étnico ou racial, descobre que
pode ser produtor do próprio sentido de sua vida. O difícil é respeitar isso
como valor, sobretudo nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus
Cristo do arcabouço judaico e greco-romano que o reveste e tanto favorece o
eurocentrismo eclesiástico.
Felizmente, o próprio Jesus nos ensina a
diferença entre imposição e revelação. Impõe-se pervertendo a natureza do
poder (Mateus 23, 1-12). Mas revelação significa "tirar o véu": ser capaz de
captar os fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias
evangélicas aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II.
Aliás,
Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da justiça. E esse dialeto
toda cultura incorpora e entende.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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