01/12/2024
Ano 27
Número 1.393





ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


QUIPROQUÓ (2)

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Avanço na leitura de Camilo Castelo Branco, escritor português que exerceu grande influência nos brasileiros. Leio “A Brasileira de Prazins”, romance publicado em 1882 e que se tornou um dos mais lidos nos países de língua portuguesa. A linguagem é encruada, repleta de palavras arcaicas, caídas em desuso, e expressões idiomáticas hoje desconhecidas. É curioso observar, porém, que algumas delas são correntes na linguagem atual. Os parágrafos são em geral longos, ocupando às vezes páginas inteiras.

Na curiosa introdução, ele diz que o amor aos livros antigos o levava a gastar com eles o pouco que sobrava de seu dinheiro “na botica onde os achaques me obrigavam a fazer grandes orgias de pílulas e tisanas.” Relata, ainda, que
um seu informante chamava de missais os livros grandes e cartilhas os pequenos. Não sei em que categoria ele colocava o livro aqui comentado.

O romance mostra a influência dos padres na política e nos governos locais e regionais. Na época, governo e igreja eram unos e os párocos buscavam abadias, bispados e outras promoções conferidas por el-Rei. Também era comum padres com filhos e a invocação de descendente de algum deles para obter favores. D. Águida, por exemplo, dama da sociedade, gabava-se e proclamava que “seu sexto avô também fora bispo e pai de sua quinta avó.” Para nós, nos dias de hoje, é difícil entender a união entre estado e igreja como estabelecia a Constituição vigente. Essa união perdurou por longo tempo. Quanto aos padres que tinham mulher e filhos “portas a dentro”, foi prática comum nos tempos de dantes. O jurista Clóvis Bevilaqua era apontado como exemplo de filho de padre.

O funcionalismo público era mal visto e criticado pela quantidade e pelo que sugava dos cofres públicos. Um país tão pequeno era “carregado por tributos” para sustentar tal burocracia, “o flagelo de Portugal.” No entanto, civis e religiosos batalhavam pelos cargos. O autor não escondia sua aversão ao clero, fato que explica a antipatia com que sua obra era por ele encarada. Enquanto isso, muita gente não se conformava com o golpe que tirou D. Miguel I do trono, proibindo sua entrada no país sob pena de cadeia. Eram os miguelistas e muitos caíram em desgraça no novo governo. Não se conformaram e passaram a fomentar guerrilhas e motins e até uma guerra sangrenta para recolocá-lo no trono. O romance passa a narrar as numerosas guerrilhas que eclodiam e depois a guerra longa e violenta que se estendeu pelo país. Avulta nas hostilidades a figura do mercenário MacDonald, nobre irlandês, que morre de tanto beber.

Simeão, pai de Marta, foi um dos prejudicados pelo novo governo. Demitido da função de regedor (prefeito?) da freguesia, ato que jamais perdoou. Marta crescia bela e formosa, cobiçada por muitos. Já adulta, apaixonou-se pelo José Dias. Certo pedreiro, escondido na folhagem de um carvalho, viu uma noite a janela do quarto de Marta se abrir e por ela saltar um homem que identificou como o próprio José Dias. A notícia ganhou o público e Marta foi muito falada. Zeferino, pedreiro, confessava sua paixão por ela desde que a menina tinha treze anos e ficou inconsolável ao saber do amor dela pelo José Dias. O rapaz, ainda que feliz com o amor da linda moça, adoece e morre sem que nada pudesse salvá-lo. Marta, inconsolável, recolheu-se ao quarto e começou a revelar distúrbios mentais.

Nesse meio tempo entra na história o tio Feliciano que regressava do Brasil, onde fizera fortuna em Pernambuco. Tnha 47anos. “Não se parecia com a maioria dos nossos patrícios que regressam do Brasil com uma opulência de formas almofadadas de carnes sucadas – diz o autor. – Era magro esqueleticamente, um organismo de poeta sugado pelos vampiros do spleen.”. Muito míope, usava monóculo “redondo num aro de búfalo barato.” E como seria de prever, apaixonou-se pela sobrinha. O pai, Simeão, enxerga ali um bom negócio e passa a pressionar a filha para se casar com o tio rico, sem levar em conta a sovinice dele.

Perdendo o amado há pouco tempo e pressionada a casar com um homem mais velho, seria natural que a moça se mostrasse nervosa. Consultados os padres aos quais Simeão era muito apegado, concluíram eles que a moça estava possuída e deveria ser submetida ao exorcismo. Esse ritual, creio que herdado da Inquisição, é a forma mais violenta de expulsar o Demônio do corpo de uma pessoa.

Assim a pobre Marta, lúcida e sã, chorando e tremendo, é exorcizada sem necessidade. O autor transcreve na íntegra o roteiro do exorcismo com todas suas longas orações, inclusive nos trechos em latim, “uma língua familiar ao Diabo.” Logo após, a padrecada, como diz o autor, se engalfinha na discussão de uma magna questão: uma vez que Deus tudo criou, também criou o Diabo e este, em consequência, também é filho de Deus. Padre Osório, cura daquela freguesia, sorria por dentro como quem duvida de tudo aquilo. Aproveitando um descuido de seus guardiães, Marta foge e se embrenha na floresta, longe, longe, longe. Amparada por D. Teresa, permanece com ela por uns tempos e, sem alternativa, retorna para casa e se submete ao pai, casando com o tio velhusco, rico e pão-duro. Entregou-se ao serviço doméstico e, mesmo odiando o marido, teve cinco filhos em sete anos! (Imagine-se se o amasse...). Contava 53 anos ao se fechar o romance e nenhum vizinho jamais a vira porque nunca mais saíra de seu quarto. Alterna períodos de lucidez e delírios, mas ainda tem lágrimas para chorar pelo José Dias.

Na voz do povo ficou conhecida como Marta, a beata, a senhora brasileira de Prazins.

Camilo, ao encerrar seu romance, escreveu: “O meu romance não pretende reorganizar coisa nenhuma. E o autor desta obra estéril assevera, em nome do patriarca Voltaire, que deixaremos este mundo tolo e mau, tal qual quando cá entramos.”

Tentei deslindar o quiproquó. Se consegui, não sei.


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC



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