Enéas Athanázio
QUIPROQUÓ
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Avanço na leitura de Camilo Castelo Branco, escritor português que exerceu
grande influência nos brasileiros. Leio “A Brasileira de Prazins”, romance
publicado em 1882 e que se tornou um dos mais lidos nos países de língua
portuguesa. A linguagem é encruada, repleta de palavras arcaicas, caídas em
desuso, e expressões idiomáticas hoje desconhecidas. É curioso observar,
porém, que algumas delas são correntes na linguagem atual. Os parágrafos são
em geral longos, ocupando às vezes páginas inteiras.
Na curiosa
introdução, ele diz que o amor aos livros antigos o levava a gastar com eles o
pouco que sobrava de seu dinheiro “na botica onde os achaques me obrigavam a
fazer grandes orgias de pílulas e tisanas.” Relata, ainda, que um seu
informante chamava de missais os livros grandes e cartilhas os
pequenos. Não sei em que categoria ele colocava o livro aqui comentado.
O romance mostra a influência dos padres na política e nos governos locais
e regionais. Na época, governo e igreja eram unos e os párocos buscavam
abadias, bispados e outras promoções conferidas por el-Rei. Também era comum
padres com filhos e a invocação de descendente de algum deles para obter
favores. D. Águida, por exemplo, dama da sociedade, gabava-se e proclamava que
“seu sexto avô também fora bispo e pai de sua quinta avó.” Para nós, nos dias
de hoje, é difícil entender a união entre estado e igreja como estabelecia a
Constituição vigente. Essa união perdurou por longo tempo. Quanto aos padres
que tinham mulher e filhos “portas a dentro”, foi prática comum nos tempos de
dantes. O jurista Clóvis Bevilaqua era apontado como exemplo de filho de
padre.
O funcionalismo público era mal visto e criticado pela
quantidade e pelo que sugava dos cofres públicos. Um país tão pequeno era
“carregado por tributos” para sustentar tal burocracia, “o flagelo de
Portugal.” No entanto, civis e religiosos batalhavam pelos cargos. O autor não
escondia sua aversão ao clero, fato que explica a antipatia com que sua obra
era por ele encarada. Enquanto isso, muita gente não se conformava com o golpe
que tirou D. Miguel I do trono, proibindo sua entrada no país sob pena de
cadeia. Eram os miguelistas e muitos caíram em desgraça no novo
governo. Não se conformaram e passaram a fomentar guerrilhas e motins e até
uma guerra sangrenta para recolocá-lo no trono. O romance passa a narrar as
numerosas guerrilhas que eclodiam e depois a guerra longa e violenta que se
estendeu pelo país. Avulta nas hostilidades a figura do mercenário MacDonald,
nobre irlandês, que morre de tanto beber.
Simeão, pai de Marta, foi um
dos prejudicados pelo novo governo. Demitido da função de regedor (prefeito?)
da freguesia, ato que jamais perdoou. Marta crescia bela e formosa, cobiçada
por muitos. Já adulta, apaixonou-se pelo José Dias. Certo pedreiro, escondido
na folhagem de um carvalho, viu uma noite a janela do quarto de Marta se abrir
e por ela saltar um homem que identificou como o próprio José Dias. A notícia
ganhou o público e Marta foi muito falada. Zeferino, pedreiro, confessava sua
paixão por ela desde que a menina tinha treze anos e ficou inconsolável ao
saber do amor dela pelo José Dias. O rapaz, ainda que feliz com o amor da
linda moça, adoece e morre sem que nada pudesse salvá-lo. Marta, inconsolável,
recolheu-se ao quarto e começou a revelar distúrbios mentais.
Nesse
meio tempo entra na história o tio Feliciano que regressava do Brasil, onde
fizera fortuna em Pernambuco. Tnha 47anos. “Não se parecia com a maioria dos
nossos patrícios que regressam do Brasil com uma opulência de formas
almofadadas de carnes sucadas – diz o autor. – Era magro esqueleticamente, um
organismo de poeta sugado pelos vampiros do spleen.”. Muito míope,
usava monóculo “redondo num aro de búfalo barato.” E como seria de prever,
apaixonou-se pela sobrinha. O pai, Simeão, enxerga ali um bom negócio e passa
a pressionar a filha para se casar com o tio rico, sem levar em conta a
sovinice dele.
Perdendo o amado há pouco tempo e pressionada a casar
com um homem mais velho, seria natural que a moça se mostrasse nervosa.
Consultados os padres aos quais Simeão era muito apegado, concluíram eles que
a moça estava possuída e deveria ser submetida ao exorcismo. Esse ritual,
creio que herdado da Inquisição, é a forma mais violenta de expulsar o Demônio
do corpo de uma pessoa.
Assim a pobre Marta, lúcida e sã, chorando e
tremendo, é exorcizada sem necessidade. O autor transcreve na íntegra o
roteiro do exorcismo com todas suas longas orações, inclusive nos trechos em
latim, “uma língua familiar ao Diabo.” Logo após, a padrecada, como diz o
autor, se engalfinha na discussão de uma magna questão: uma vez que Deus tudo
criou, também criou o Diabo e este, em consequência, também é filho de Deus.
Padre Osório, cura daquela freguesia, sorria por dentro como quem duvida de
tudo aquilo. Aproveitando um descuido de seus guardiães, Marta foge e se
embrenha na floresta, longe, longe, longe. Amparada por D. Teresa, permanece
com ela por uns tempos e, sem alternativa, retorna para casa e se submete ao
pai, casando com o tio velhusco, rico e pão-duro. Entregou-se ao serviço
doméstico e, mesmo odiando o marido, teve cinco filhos em sete anos!
(Imagine-se se o amasse...). Contava 53 anos ao se fechar o romance e nenhum
vizinho jamais a vira porque nunca mais saíra de seu quarto. Alterna períodos
de lucidez e delírios, mas ainda tem lágrimas para chorar pelo José Dias.
Na voz do povo ficou conhecida como Marta, a beata, a senhora brasileira
de Prazins.
Camilo, ao encerrar seu romance, escreveu: “O meu romance
não pretende reorganizar coisa nenhuma. E o autor desta obra estéril assevera,
em nome do patriarca Voltaire, que deixaremos este mundo tolo e mau, tal qual
quando cá entramos.”
Tentei deslindar o quiproquó. Se consegui, não
sei.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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