Enéas Athanázio
REENCONTRO COM UM DE MEUS
“MONSTROS SAGRADOS”:
FRANZ KAFKA
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Depois de longos anos, mergulhei no livro “Kafka – Vida e
Obra”, de autoria do catarinense Leandro Konder, publicado pela extinta casa
editora José Álvaro Editor em 1967, portanto há mais de 54 anos (Rio de
Janeiro). Apesar do tempo decorrido, a obra provoca o mesmo impacto da
primeira leitura e prende o leitor até o final. O autor se revela exímio
conhecedor do assunto e escreve de maneira leve e elegante. Como se
verifica do título, trata-se de um ensaio sobre a vida e a obra do escritor
tcheco Franz Kafka (1883/1924), nascido em Praga em uma família judia e de
língua alemã. Duas circunstâncias que influiriam sobremodo na sua vida, uma
vez que os judeus já eram vítimas das discriminações que o nazismo levaria ao
extremo e que não se expressavam na língua nacional, o tcheco. Ele produziu
toda sua obra no idioma de Goethe, o que dificultou sua difusão no próprio
país natal. Kafka padeceu da solidão e da tristeza que ela lhe provocava
durante toda a vida. Salvo curtos períodos, também nunca se realizou no amor,
ainda que Dora, sua última companheira tenha se dedicado a ele ao extremo.
Essas circunstâncias transparecem em sua obra de criação.
A ficção de Kafka
enveredou, desde o início, pelos caminhos do fantástico, deixando perplexos os
leitores que a julgavam “sem pé nem cabeça” e embaraçando os críticos que
ficavam à procura de uma “chave” para sua interpretação e que, na verdade,
nunca existiu. Como afirma o ensaísta, ele não se preocupou em enviar
mensagens, mas apenas em contar estórias cada vez mais surpreendentes. Dotado
de portentosa imaginação criadora, engendrou casos tão extraordinários que
quebraram as cabeças de muitos intérpretes. Uma dessas “chaves” tentou
explicar suas estórias como parábolas religiosas ou teológicas; outra imaginou
aspectos psicanalíticos embutidos nelas e uma terceira vislumbrou reflexos
doentios decorrentes do mal que o acometia. Ele foi tomado pela tuberculose,
mal que o vitimou. Como afirma Leandro Konder, nem uma só dessas
interpretações se sustenta e nesse sentido realiza minucioso e profundo exame.
Em “A Metamorfose”, talvez sua obra mais conhecida, “Ao despertar, certa
manhã, depois de uma noite mal dormida, Gregor Samsa achou-se, em sua cama,
transformado num monstruoso inseto.” O contista não informa de que inseto se
tratava, mas tudo indica que fosse uma barata. Ao descobri-lo naquele estado,
a família entra em pânico e aí tem início o sofrimento do personagem.
Solitário e isolado no quarto, vive situações pavorosas e encontra um fim
horrível. Em “O Processo”, um de seus romances, relata a estória de Joseph K
que é submetido a um processo penal sem que lhe digam de que é acusado. É
forçado a seguir os complexos trâmites judiciais, que não consegue entender,
até que parece conformado com tão absurda situação. Por fim, acaba sendo
morto, executado a faconadas, em um terreno baldio. É um exemplo da burocracia
que acaba se concentrando em si mesma e perde de vista a sua finalidade.
Lembra um pouco o personagem de Lima Barreto que cumpria de maneira cega o
regulamento, embora não soubesse a razão. Já no romance “O Castelo”, o
personagem central é chamado pelo conde West West, senhor do castelo, para
prestar serviços de agrimensura. Uma vez na cidade, não consegue chegar no
castelo para se avistar com seu contratante. Tantos são os obstáculos que
geram as mais absurdas situações. Só depois de muita luta na qual acaba
morrendo, chega o convite para que lá se apresente. São situações chocantes,
absurdas, incompreensíveis. Para citar mais alguns exemplos, lembro o conto
“Um Velho Manuscrito”. Nele, os nômades, vindos do norte, se acampam na praça
da cidade, diante do palácio do governo. Passam os dias afiando as espadas.
“São bárbaros, rústicos, primitivos, violentos. São odiosamente sujos,
alimentam-se juntamente com seus cavalos e comem, em promiscuidade, a mesma
coisa que os cavalos. Quando precisam de alguma coisa, tomam-na, sem jamais
terem a preocupação de pagar...” Todas as manhãs, bem cedinho, vão ao açougue
e se apropriam de toda a carne que o açougueiro havia preparado para os
clientes. Cansado de tão inútil trabalheira, o açougueiro leva consigo um boi
vivo, imaginando surpreender os nômades. Mas, para seu espanto, eles não se
apertam: caem de dente sobre o animal e o comem vivo até os ossos. “Os gritos
do boi são tão apavorantes que o açougueiro resolve nunca mais repetir o
expediente.” E o palácio do governo? Continua hermeticamente fechado. Outros
textos mereceriam especial destaque, como os contos “A Toca”, “A Muralha da
China”, “Um Artista da Fome”, “A colônia Penal” e ainda “A Condenação”, conto
extraordinário e chocante por todos os motivos. Mas isto basta para dar uma
ideia da imensidão criativa de Kafka.
Pouco antes de falecer, ele
recomendou ao leal amigo Max Brod que queimasse todos os manuscritos não
publicados. Por sorte o testamenteiro literário não cumpriu a determinação e
tratou de publicar suas obras. Por outro lado, criou a interpretação teológica
que, sem querer, muito dificultou a difusão da obra de Kafka. Franz Kafka
foi um inconformado com o monstro mecânico em que o mundo se transformou e no
qual o indivíduo isolado tende a ser esmagado. Como acentua o crítico, suas
obras são geniais, embora anômalas, sui generis, impossíveis de serem imitadas
Citando a Bíblia, ele dizia que os hebreus se conduziam por uma lei de toda a
comunidade, enquanto hoje vigora uma competição ferrenha em que cada um só
pensa em si. No fundo, ele foi um solitário e um inadaptado.
Jean-Paul
Sartre foi um dos grandes divulgadores de Kafka e contribuiu em muito para sua
aceitação pelos leitores da Europa oriental.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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