Enéas Athanázio
BALANÇO GERAL DA POESIA
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Passei bom tempo
examinando, consultando, lendo e relendo o livro “A Poesia da Literatura
Brasileira – Do Barroco ao Modernismo”, de autoria da Profa. Maria de Fátima
Gonçalves de Lima (Editora Kelps – Goiânia – 2020). Pela extensão da pesquisa
e volume da obra, fica a impressão de que se trata de um trabalho de equipe e
não de uma só pessoa, tal a quantidade dos temas abordados. A autora fez uma
profunda incursão na história literária nacional para destacar a poesia mais
significativa e seus autores, analisando cada etapa e fornecendo elementos
para a compreensão do leitor interessado. O espaço dedicado a cada uma das
escolas e seus expoentes poderia constituir um livro autônomo. O volume contém
646 páginas, em tamanho grande, rica bibliografia e excelente material
iconográfico.
Merece atenção, antes de mais nada, o ensaio sobre o poema
publicado como introdução. Nele a autora procura desvendar o enigma da
linguagem poética e seu significado. Vale a pena ser lido e meditado. Em
seguida ela penetra no exame cronológico das escolas poéticas desde o início
até o modernismo, fornecendo uma espécie de balanço da poesia brasileira.
Começa abordando a poesia de Gregório de Matos, o Boca do Inferno ou Poeta
Maldito. Nascido no Século XVII, na Bahia, é considerado a primeira grande voz
de nossa poesia e seu criador. O Barroco, escola ou tendência a que se filiou,
surgiu em uma época de crise, tanto no mundo como em nosso país. O meio
religioso fervia com a Reforma de Lutero e o rompimento de Henrique VII com o
Papa, negando sua chefia e se declarando chefe da Igreja. O poeta baiano
praticou uma poesia lírica e também satírica, tornando-se esta mais conhecida
e popular. Alvejava nos seus versos candentes os costumes, pessoas e
autoridades, o que lhe causou inúmeros problemas. Não perdoava o descaso de
Portugal com o Brasil, praticando um colonialismo predatório, mas também
cantou a mulher e o amor com poemas de grande lirismo. Sua poesia era sempre
de alto nível e lhe reservou posição de destaque no pórtico de nossa poesia.
A entrada em cena de Tomás Antônio Gonzaga provoca alterações no meio poético:
traz consigo o amor e a paixão. Filiado ao Arcadismo, escola nascida na
Europa, Gonzaga era magistrado e se ligou aos Inconfidentes, posição pela qual
pagou alto preço. Foi deportado para a África (Moçambique), perdeu o cargo e
passou a se dedicar a outras atividades até a morte. Produziu as célebres
liras “Marília de Dirceu” que obtiveram grande aceitação e permanecem como um
de seus mais importantes legados poéticos.
Nas palavras da autora, Antônio
Gonçalves Dias foi o poeta da canção, do índio e dos amores. Nascido em
Caxias, no Maranhão, foi o autor da primeira obra romântica da poesia
brasileira: “Primeiros Cantos” (1846). Além de produzir uma poesia lírica e
amorosa, enveredou pelo indianismo. Em ambas as linhas sua poética foi
exaltada e influente. No que diz respeito ao indianismo, a autora estende o
ensaio até os dias atuais, reproduzindo inclusive obras de artistas plásticos
sobre a temática indígena, como o extraordinário quadro “Iracema” (óleo s/
tela) de autoria de José Maria de Medeiros (1884) e obras de autores diversos,
como Tarsila do Amaral, entre outros, e fotos recentes. Gonçalves Dias teve
fim trágico, até hoje lembrado com tristeza pelos maranhenses. Retornando da
Europa, onde fora a tratamento de saúde, o navio em que viajava naufragou na
costa do Maranhão e o poeta submergiu sem rever o chão natal.
Álvares de
Azevedo surge em fase diferente. Praticava um romantismo que idealiza a
realidade, uma poesia ultra-romântica, para usar as palavras da autora. Após a
Revolução Francesa o mundo sofria grandes transformações e a Revolução
Industrial o movimentava de maneira nunca vista. Ocorreram mudanças radicais
na forma de vida das pessoas e a população da Europa cresceu de maneira
impressionante. O mundo parecia outro. A idealização da mulher, o platonismo
amoroso, a imagem da mulher adormecida, o noivo da morte, a palidez do poeta
são alguns temas que permeiam sua poesia. Em “Lira dos Vinte Anos” escreve
dois prefácios. No primeiro, fala da arte lírica, doce e frágil. No segundo
aborda o pessimismo, a tristeza, a desilusão, o spleen, a sátira e a ironia –
explica a ensaísta. Em seguida ela penetra em longa e fundamentada análise
crítica da poesia de Álvares de Azevedo, Ariel e Caliban estão explícitos em
seus poemas, o diabólico licor, o brasileirismo malandro, as ideias íntimas,
nada é omitido. “Noite na Taberna” também merece tratamento amplo e profundo.
A segunda geração do romantismo também é abordada.
Alphonsus de
Guimaraens, ainda que com tal nome inusitado, mereceu amplo espaço. Segundo a
ensaísta, foi o poeta dos sinos plangentes, dos cinamomos, da vida, da morte e
da transcendência. Ele “foi dono de um simbolismo ímpar, de brilho próprio. A
sistemática da escola foi um meio e não um fim único de construir sua arte
poética” – escreveu a autora. Entendo que ele exerceu um simbolismo
sui
generis na escola que surgiu na Europa e contou com expoentes como Rimbaud,
Mallarmé, Verlaine e o nosso Cruz e Sousa, entre outros. Foi com este que o
simbolismo começou a se manifestar entre nós, embora sem os resultados obtidos
na Europa. O interesse pelo mistério e pelo indefinido, a exploração do tema
da morte, a metalinguagem, a concepção mística do mundo são temas que permeiam
a obra do poeta. A autora promove em seguida longa análise crítica da obra do
poeta, enfatizando que no simbolismo as sensações mais íntimas são
investigadas em sua profundidade, vem à tona o eu escondido nas regiões do
inconsciente. O símbolo reveste e dá forma à ideia. Excelente ensaio
recordando um poeta que se encontrava no ostracismo. O paraibano Augusto
dos Anjos foi um dos poetas que mais me impressionou. Fiz contato com ele em
plena juventude e o livro “Eu e Outras Poesias” esteve sempre à mão para ser
lido, relido e treslido. Uma poesia dura e seca que parecia matemática quando
metrificada e que chocou os leitores da época. Segundo a autora, é um poeta
original, diferente de tudo que o antecedeu. Afirma ainda que se trata de “um
poeta excepcional na literatura brasileira e sua obra é a soma do realismo, do
naturalismo, do parnasianismo, do simbolismo e de outros ismos da segunda
metade do Século XIX e início do Século XX.” Não se filiou a nenhuma escola,
mas registrou seu tempo, sua realidade e seu mundo. Desnudou um universo de
imagens degradantes e hediondas. A podridão, o pessimismo, a angústia, o
cientifismo, o negativismo, o niilismo, o escarro, os vermes, o feio e o
hediondo chocam em sua poemática. Considerado o poeta do mau gosto, sua poesia
é de extraordinária qualidade e de alto relevo no panorama poético nacional. O
vate da dor e do infortúnio também questionou e morte e seu mistério, como
tantos outros, mas, ao que parece, ele a considerava um fenômeno natural.
Cabe-lhe ainda o título de precursor do modernismo. Faleceu aos 30 anos de
idade em 1914.
Até aqui venho tecendo breves comentários sobre os poetas
mais antigos, distanciados no tempo, objeto da atenção de Maria de Fátima.
Ela, porém, vai muito além e aborda outros poetas, todos merecedores, a rigor,
de um comentário especial, mas isso seria inviável nos limites de um artigo.
Diante disso, limito-me a mencioná-los com eventual nota que me parecer
oportuna.
Manuel Bandeira, poeta modernista de grande aceitação, foi muito
popular e sua poesia granjeou leitores de maneira considerável. Escrevendo
sobre Lima Barreto, cunhou uma frase que se perpetuou a respeito do infortúnio
do criador de Policarpo Quaresma: “A vida toda que poderia ter sido e que não
foi...” Adotada por Francisco de Assis Barbosa, o maior biógrafo de Lima
Barreto.
Cecília Meireles, poeta que uniu o apuro formal, a captação
sensorial e a musicalidade. Mereceu grande simpatia como poeta e como pessoa.
Sua poesia é analisada em profundidade pela autora.
Carlos Drummond de
Andrade, creio que o poeta mais popular do Século XX. Comentei seu célebre
“Poema da Pedra” e ele agradeceu através de carta. Conheci e falei com ele
numa sessão do Sabadoyle. A ele a autora dedicou um dos mais longos ensaios do
livro.
Mário Quintana, poeta muito popular, em especial aqui no Sul.
Bem-humorado, alegre, simpático, estava sempre cercado pelos admiradores.
Estive com ele mais de uma vez.
João Cabral, poeta célebre, creio ter lido
toda sua obra. Mereceu da autora excelente abordagem. Ela lavrou um trunfo ao
publicar uma foto do poeta sorridente. Creio que é a única, um achado.
Considerado o poeta das palavras, talvez pelo esmero com que escolhia o
le mot
just dos franceses. Ressalto, por fim, a imensidão da
pesquisa feita pela autora e sua qualidade. Produziu um livro indispensável e
que faltava em nossas letras. Autora de obra vasta e variada, destacando-se os
livros “O Discurso do Rio em João Cabral”, “Arte e Poesia em Goiás” e “O Signo
de Eros na Poesia de Gilberto Mendonça Teles e Outros Ensaios”, Maria de
Fátima Gonçalves de Lima merece todos os aplausos pelo trabalho que realizou.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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