Enéas Athanázio
SOBRE W. G. SEBALD
O legado de um gênio
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Só conhecia de
nome o escritor alemão W. G. Sebald (Winfried Georg Sebald – 1944/2001)
quando um livro de autoria dele me veio às mãos por obra e graça do amigo
Carlos Adauto Vieira, o Charlot. Trata-se de “”Campo Santo”, publicado pela
Companhia das Letras em tradução de Kristina Michabelles (S. Paulo – 2003).
O romance “Os anéis de Saturno” despertou minha atenção mas não cheguei a
ler. Desde que recebi, não larguei mais o volume, empenhado em vencer o
desafio de uma leitura exigente até o fim.
O volume reúne uma
coletânea de crônicas e ensaios produzidos em ocasiões diferentes sob o
influxo de acontecimentos como viagens, passeios, encontros, leituras e
lembranças. Tudo é escrito de forma esmerada, exigindo do leitor uma
participação atenta e concentrada. Ele não usa uma linguagem encruada ou
hermética, com vocabulário sofisticado, salvo quando o assunto o exige, mas
seu estilo exige atenção. Os parágrafos são longos, ocupando às vezes uma
página inteira e até mais, encadeando ideias que vão puxando outras ideias e
muitas vezes se elevam em pensamentos filosóficos onde a imaginação do autor
vai pairar. Diria que ele é um escritor poético e filosófico, ainda que
escrevendo em prosa.
Os quatro primeiros textos são crônicas
relacionadas de uma forma ou outra à ilha da Córsega que o autor visitou com
olhos de ver e cujas marcas ficaram indeléveis. Começa com um passeio a
Ajacio, berço do imperador Napoleão, por onde o autor deambula livre, leve e
solto debaixo de um céu magnífico e sentindo a leve brisa do mar. Entra ao
acaso nas trilhas que avançam para o interior da mata, imaginando como seria
morar num daqueles casarões de pedra de idade imemorial. Ele caminha e o
pensamento voa, passando por mil recordações e assuntos. Visita o museu e o
Castelo Napoleón e, no final da tarde, se recolhe ao hotel, repleto de
imagens e sensações.
“Campo Santo”, a crônica-título, é um texto
longo e rico que descreve um passeio poético e filosófico por um cemitério
na Córsega. Nada mais insólito que perambular pelo campo santo de uma
cidade, mas ele transformou essa experiência numa crônica das mais atrativas
e agradáveis. Nada lhe escapa como observador arguto que é. Os detalhes, a
vegetação, o formato dos túmulos, o costume de enterrar as pessoas com as de
seu clã, o sepultamento em terras de família que não poderão jamais ser
alienadas, os nomes escritos nas placas e tudo o mais. E o pensamento voa,
irrequieto, ilimitado, imaginativo, solto. É um filósofo em andanças
peripatéticas. Sem discípulos.
As duas crônicas seguintes fecham a
série corsa. Com uma advertência para nós: toda a ilha fora coberta por
densas florestas que desapareceram. O machado nas mãos dos colonos acabou
com elas. Lembra o que ocorre com nossa Amazônia.
No capítulo dos
ensaios aparecem críticas e interpretações literárias de obras de escritores
famosos mas pouco conhecidos do grande público. Os temas abordados são os
mais estranhos e inusitados. Começa comentando a peça “Kaspar”, de autoria
de Peter Handke na qual se cruzam crise, estranheza e integração. “Entre a
história e a história natural” investiga aquilo a que chama de incapacidade
da descrição literária da destruição total. Haveria uma espécie de bloqueio
que não permite aos autores, em especial aos alemães, reconstituírem com
fidelidade o desaparecimento de suas cidades ou até países reduzidos a
escombros após um bombardeio, por exemplo. A descrição ficaria sempre
incompleta ou inverossímil. “Construções do luto” analisa fenômeno
semelhante em relação ao luto, ou seja, certa incapacidade de viver o luto
após as magnas catástrofes. Obras de Gunter Grass, Wolfgang Hildesheimer,
Eric Nossack, Hermann Ott e Shakespeare funcionam como base de sustentação
para a discussão do tema em que entram a melancolia, a falta absoluta de
luz, o destino dos judeus em Dantzig, a campanha eleitoral pela
social-democracia e as noites de Hamlet. A conclusão é de que há um déficit
na literatura do pós-guerra que revela a incapacidade de viver o luto.
Simples, não?
“A contrição do coração” analisa memória e crueldade na
obra Peter Weiss; “Com os olhos do pássaro morto” revê a obra de Jean Améry;
“O filhote de lebre, a lebrezinha” analisa o animal totêmico do poeta Ernst
Herbeck, incluindo trechos de vários poemas.
A partir daí os temas
são mais acessíveis, ainda que longe do fácil. Duas crônicas entrelaçadas
abordam as relações de Kafka com um cinema ainda incipiente e suas reações
ante a chamada sétima arte. “Via Suíça até o bordel” comenta o diário de
viagem do autor de “Metamorfose” e “Kafka” vai ao cinema” examina as
opiniões do escritor sobre o cinema levando em conta sua portentosa
imaginação a respeito do que aquela arte poderia produzir.
Nabokov também
merece uma abordagem, assim como o pintor Jan Peter Tripp, cujo quadro “A
cavala” deixa em aberto uma questão: que significam as duas mãos fechadas
diante do prato com o peixe? O texto não esclarece, ficando o leitor livre
para mil especulações. “O segredo da pele marrom-avermelhada”, que ele
designa como uma tentativa de aproximação com Bruce Chatwin, deixa no ar
enigmas para movimentar a cabeça do leitor. Por fim, “Moments Musicaux”
comenta as complicadas relações do autor com a música. Em certa fase a mãe
insistia para que aprendesse a tocar violoncelo cujas aulas constituíam
verdadeira tortura. Tal como a mãe de Hemingway que também o submeteu a
idêntico sacrifício sem resultado algum.
Já se aproximando do final,
o livro estampa “Uma tentativa de reparação”, crônica ambígua porque não
esclarece com precisão o que pretendia reparar. Seria um acerto de contas
com o passado, uma forma de esquecer o mau humor do pai que havia saído de
um campo de prisioneiros de guerra na França ou um contato com uma menina
que havia escrito, muitos anos antes, um cartão postal sobre sua estadia em
Stutgart, cujo povo era muito simpático e acolhedor? Não se sabe. Ele se
esforça para tirar da cabeça algumas lembranças desagradáveis ligadas a essa
cidade de Stutgart por onde andara. Chega, por fim, ao fato de que Friedrich
Holderlin tinha orgulho de ser filho daquela terra a que chamava de princesa
da pátria. Analisando tudo que aconteceu a Stutgart, antes, durante e depois
da guerra, ele se pergunta: para que serve a literatura? E então conclui: só
a escrita literária ultrapassa o mero registro dos fatos e da ciência, numa
tentativa de reparação. Só a literatura consegue registrar com perfeição o
mundo em movimento, acrescento eu.
Em pouco mais de uma página, num
texto enxuto e surpreendentemente curto, ele agradece sua admissão na
Academia Alemã de Língua e Literatura. Destaca-se o trecho em que ele parece
se penitenciar por ter deixado a pátria por tantos anos para viver na
Inglaterra.
O livro de Sebald é de leitura exigente. Toda leitura é
um ato a dois: o escritor e o leitor. No caso dele essa interação é ainda
mais necessária para que o leitor pelo menos tente alçar voos com ele nas
suas elucubrações poéticas e filosóficas. Talvez por isso ele não tenha se
transformado num escritor popular. Ou então porque tenha falecido muito
cedo, aos 57 anos de idade, fato deveras lamentável. Muito se poderia
esperar dele caso vivesse mais vinte ou trinta anos.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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