Enéas Athanázio
CONFISSÕES |
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José Saramago, único escritor de língua portuguesa a
receber o Prêmio Nobel de Literatura, e Pilar Del Rio formaram um dos casais
mais admirados de todo o mundo. Ancorados em Lanzarote, ilha vulcânica
pertencente à Espanha, criaram um estilo de vida invejável em que ele
desfrutava na plenitude a vivência do escritor e ela realizava suas tarefas
jornalísticas de intensa repercussão. Durante muitas sessões, o célebre
casal foi submetido a uma torrente de indagações, algumas vezes indiscretas,
para constituírem o livro “Conversas Inéditas: José e Pilar”, de autoria do
jornalista Miguel Gonçalves Mendes, prefaciado por Valter Hugo Mãe
(Companhia das Letras – S. Paulo – 2012). Ambos os entrevistados se abrem
com a maior sinceridade, chegando às vezes ao terreno das confissões mais
íntimas.
No prefácio, logo de início, Valter Hugo Mãe escreve
palavras que bem merecem transcrição. “Defino categoricamente José Saramago
– diz ele – pela sua honestidade intelectual, uma frontalidade que
caracteriza todo o seu discurso. Poucos serão os escritores, os muito
grandes escritores, que assumiram de modo tão declarado seu compromisso
ideológico, talvez até a sua utopia, dentro e fora dos livros, à procura de
se colocarem diante da sociedade como essa voz de uma tremenda transparência
e reiterada preocupação.” E, de fato, ele sustentava suas posições sem se
importar com as consequências. E estas nem sempre foram as melhores.
A literatura de Saramago, sem dúvida, é desconcertante para os espíritos
conservadores. Escreveu sem a divisão em tópicos ou capítulos, eliminou a
pontuação, encrustou o diálogo no próprio texto expositivo e se valeu de
outros recursos que exigem bastante do leitor para bem absorver sua obra.
Tudo isso provocou a mesma estranheza que Nadine Gordimer ou Guimarães Rosa
quando lançaram seus primeiros livros. Com o tempo, porém, Saramago foi
melhor compreendido e admirado, sendo hoje um dos mais lidos escritores de
língua portuguesa, além de traduzido para inúmeros outros idiomas.
Relata Saramago que teve vida difícil, sem o charme com que viveram tantos
escritores. Diante disso, afirma ele, pouco tinha a contar sobre uma
existência destituída de colorido. Serralheiro mecânico de profissão, viu-se
de repente sem emprego. Não tinha trabalho, ninguém lhe ofereceu e também
não pediu. Consultou o coração e indagou se teria algo a dizer que pudesse
interessar ao leitor. Foi então para o Alentejo e decidiu escrever, tomando
a grande decisão de sua vida. A escrita evoluiu bem e quando deu por si
tinha em mãos o romance “Levantando do chão”, trabalho muito sério, pensado
e esmerado. O romance foi bem recebido e nasceu aí aquilo a que os críticos
dão o grave apelido de homem de letras. Não parou mais de escrever.
Trabalhou e trabalhou no ofício árduo e solitário de compor com palavras
obras-primas da moderna literatura. Aos poucos, devagar e em silêncio, o
sucesso foi acontecendo, como dizia Howard Fast. Os caminhos não estão
feitos, - afirma ele, - é andando que cada um de nós faz o seu próprio
caminho. Se sou escritor, tenho que escrever porque é isso que faz de mim
uma pessoa diferente das demais.
Em outra passagem aborda a
influência alheia sobre as pessoas. Dizer alguém que faz de sua vida o que
quer soa falso porque ninguém é imune à influência, por mais que procure ser
independente. A influência dos outros pode ser maior ou menor, mas jamais
deixa de acontecer. Aborda suas relações com o país natal, Portugal, onde um
de seus livros foi censurado e proibido de circular, fato que motivou sua
mudança para Lanzarote. Não poupa os compatriotas, considerando-os invejosos
e ressentidos. Em todo caso, não vê na ilha uma morada definitiva; é como um
acampamento à beira do caminho. Confessa que não acredita em inspiração; o
que há é trabalho, suor, esforço. Afirma que em arte, em literatura, nenhuma
obra tira o lugar de outra; elas convivem lado a lado. Não é porque foi
escrito “Dom Quixote” ou “Ulysses” que outras obras não possam existir.
Explica em detalhes o famoso caso do jornal “Diário de Notícias”,
difundido em todo o mundo, em que o acusavam de ter prejudicado numerosos
colegas de ofício. Na verdade, afirma ele, não teve qualquer participação ou
responsabilidade no episódio, tudo não passando de pura maledicência.
Prosseguindo, aborda outros temas os mais variados. A saudade, a morte, a
fé, a religião, o apego ao chão natal, as memórias, os amigos, as
realizações, as conquistas. Referindo-se à vida eterna, lembra que ela seria
uma convivência infinita com a velhice. Que vantagem haveria em viver para
sempre e como velho? – indagava ele.
Por fim, entre tantas e
tão variadas confissões, ele e Pilar falam do casamento e da vida em comum.
Ambos enfatizam que são movidos pelo trabalho, mesmo porque, para descansar,
todos disporemos da eternidade.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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