Enéas Athanázio
VERDADEIRA PROTAGONISTA, A
LINGUAGEM |
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Como
anotou um crítico da época, a publicação do romance “Grande Sertão:
Veredas”, de Guimarães Rosa, em 1957, provocou verdadeiro abalo sísmico na
literatura nacional. As reações em geral foram de espanto diante da
novidade. Muitos não aceitavam o que lhes parecia a violação da linguagem
tradicional. Mas a curiosidade era intensa e lembro da corrida à Livraria
Anita Garibaldi, de propriedade do escritor Salim Miguel, em Florianópolis,
para adquirir o exemplar da obra tão revolucionária e comentada. Com o
passar do tempo a narrativa do jagunço-filósofo Riobaldo não apenas foi
aceita e admirada, conquistando o autor inumeráveis leitores e admiradores.
Até hoje Guimarães Rosa é um dos autores brasileiros mais lidos e estudados,
tendo merecido incontáveis abordagens de todos os gêneros.
Dentre esses
estudos, merece destaque o ensaio “Guimarães Rosa: vida e obra nos alinhavos
da linguagem”, de autoria da Professora Márcia Marques de Morais, publicado
em abrangente coletânea sobre a literatura mineira (*). Professora militante
e especialista na vida/obra do escritor nascido em Cordisburgo, é autora de
inúmeras sondagens da produção do autor e participante em eventos a respeito
dele.
Ela inicia o ensaio mostrando como o sertão e o mundo se
entrelaçaram na vida e na literatura de Rosa. Nascido na cidade que reúne
coração em latim (cordis) e cidade em alemão (burgo), o ambiente rural da
terra natal o acompanharia sempre e ele os une no gosto pelo estudo das
línguas. A linguagem o fascina, como a protagonista verdadeira de sua obra,
como salienta a ensaísta. Nessa lida ele funde, transpõe e transforma o
código linguístico, enriquecendo sobremaneira o linguajar que provoca
espanto e curiosidade no leitor, a começar pela primeira palavra do romance:
nonada.
Falando e entendendo variados idiomas, ele submetia cada palavra
a rigoroso exame. Como declarou, “seria preciso livrar cada palavra da
saturação do uso cotidiano sondando-lhe o momento mágico em que cada uma
delas acabou de nascer e guarda ainda uma relação original com a coisa
nomeada.” O uso desgastaria a palavra, afastando-a do verdadeiro sentido?
Por isso ele afundava na busca da origem de cada uma delas. Acentua a
ensaísta que em alguns escritos de Rosa “a língua é personagem importante
para seu desenredo”, como acontece no conto “Famigerado”, em que o narrador
faz uso de seu conhecimento linguístico para despistar o verdadeiro sentido
da palavra que dá nome ao conto. É uma engenharia admirável, um jogo de
palavras só possível ao grande entendedor de idiomas. “Guimarães Rosa –
escreve a ensaísta - presta sua homenagem ao código linguístico, jogando luz
sobre a língua portuguesa.” O ensaio é rico em observações a respeito da
luta de Rosa com as palavras. Diante delas, ele busca sua história, as
origens, as raízes, os autênticos significados. Como conhecedor de línguas,
transforma, funde, separa, altera, compõe neologismos, sempre fundamentado
nas regras da língua e sem que nada se mostre incongruente. Teria mesmo
Guimarães Rosa pensado em tantos detalhes? Tudo não seria suposição dos
críticos? Mas a ensaísta afirma e comprova, tantas vezes com o depoimento do
próprio escritor. A relação de Guimarães Rosa com a língua é uma relação
amorosa, diz a autora, transcrevendo palavras do autor em que ele afirma
formar com ela um casal apaixonado que procria sem cessar.
Para concluir,
direi que o ensaio de Márcia Marques de Morais é um abridor de fronteiras,
indicando caminhos jamais imaginados pela filosofia do leitor comum. Na
próxima releitura do romance já verei muita coisa com novos olhos,
convencido de que Guimarães Rosa foi iluminado pela centelha do gênio e
mesmo tendo vivido pouco deixou uma herança literária inigualável.
_______________________________ “Literatura Mineira: Trezentos anos”,
Org. Jacintho Líns Brandão, BDMG Cultural, Belo Horizonte, 2019, p.
360.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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