Enéas Athanázio
Crônicas Intimistas |
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A crônica é um gênero
literário considerado leve, o que não significa que seja fácil. Nela, o
autor tem as antenas ligadas para captar os temos “cronicáveis”, fiapos de
vida às vezes mínimos, para transformá-los em belas páginas literárias.
Rubem Braga chegou a usar o voo de uma borboletinha amarela, no centro do
Rio, para produzir uma de suas mais belas crônicas.
Raquel Naveira,
escritora prolífera e atuante nos periódicos destinados às letras, em seu
livro “Leque Aberto” (Editora Penalux – S. Paulo – 2020) buscou caminhos
diferentes e criativos nas crônicas que reuniu no volume. Tomando como ponto
de partida velho leque encontrado nos guardados da mãe, distribuiu os textos
em capítulos que melhor representam seu conteúdo: abre-se o leque, as hastes
do leque, a renda do leque, os adornos do leque, fecha-se o leque, o mofo do
leque e epílogo. Nas crônicas ela aborda os mais variados temas, inclusive
filosóficos, psicológicos, históricos e outros, revelando-se sempre uma
escritora erudita e bem informada nos mais diversos campos do conhecimento.
Confesso que li o livro de ponta a ponta, contrariando a regra que aprendi
de que a crônica deve ser lida uma a uma para bem saborear e reter seu
conteúdo.
Chamou minha atenção em particular, neste livro, o caráter
intimista de muitas crônicas, escritas com franqueza e sinceridade, como se
a autora desejasse fazer confissões íntimas, revelar o que vai no fundo de
sua alma, talvez procurando livrar-se de pensamentos pesados à maneira de
quem se submete à psicanálise e, deitada no divã, coloca-os para fora. Por
outro lado, é constante a busca do autoconhecimento.
No correr da
leitura começam a despontar os agrados e desagrados da cronista. A vaidade
avulta entre estas. “Vaidade de vaidades! É tudo vaidade! – escreveu o rei
Salomão, por ela lembrado. E prossegue: “Confessemos o quanto somos
vaidosos. O nosso cuidado exagerado com a aparência. O desejo de atrair
admiração e elogios. A necessidade de ter a própria existência reconhecida.”
Por desagradável que seja, a vaidade está em toda parte e os que “se acham e
têm certeza” são cada vez mais numerosos.
Em outra passagem a autora
confessa que é tomada do mesmo ímpeto deambulatório de Lima Barreto que
palmilhava sem cansaço as ruas cariocas. Andar é um de seus prazeres. “Sou
da estirpe dos andarilhos, – escreveu ela - dos peregrinos, dos forasteiros.
Ando bem e rapidamente pelas vias do tempo. Sinto-me sempre estrangeira. Não
caibo aqui, mesmo sendo minha terra, mesmo sendo meu destino. E avanço,
adianto-me com o peito para a frente, navego estendendo velas brancas. Não
posso parar. Parar não paro.” Faz-me lembrar de Neruda, que sonhava em
percorrer todas as estradas do mundo.
Mais adiante ela confessa que
se fosse flor seria uma margarida. Depois navega com a margarida nas
lembranças de criança, nas lendas, nos fatos da vida, nas línguas, nas
artes. A beleza da flor e seu significado. E conclui: “Beleza e bondade
encantam e mudam as circunstâncias difíceis (ainda acredito nisso).”
Considerando a avassaladora presença do mal e a brutalidade reinante nos
dias de hoje a autora escreve uma página dura mas realista. “Estamos
leprosos, cheios de feridas emocionais que nos isolam do convívio com nossos
semelhantes. A lepra penetra as raízes nervosas e faz com que não tenhamos
mais sensibilidade. Estamos cativos de nossos erros imundos, negando a
verdade. Não sentimos mais a presença do divino em nós e no outro. É preciso
clamar para que as cascas sejam retiradas e voltemos a ter compaixão.
Livremo-nos desse mal bruto, que nos cega e nos dá aspecto de leões. Que
caiam as escamas e cogumelos de nossos olhos. Que possamos ver.”
Para
não me estender além do razoável, registro alguns pensamentos esparsos da
cronista. “O teatro e a peste são benfazejos porque fazem cair as máscaras e
põem a descoberto o quanto somos pobres, miseráveis e nus” (p. 106). “E eu
me encontrei com Ricardo Reis, no Rio de Janeiro, certa vez. Assim, este
ensaio é um delírio, um labirinto, um novelo, uma teia” (p. 148) “Às vezes,
como Clícia, penso que carrego um fardo enorme. Meu corpo se curva e retorce
como um girassol amargurado. De repente, quando vejo o sol lá no alto,
abro-me em pétalas, ergo a face cansada e me entrego como oferta viva, pura,
alma sedenta de luz” (p. 151) “Essas figuras preocupadas com a pouca comida
são a representação da fome. Nos lugares com fome de ética, o povo padece
fome” (p. 154) “Sentimo-nos sensíveis às mais diversas causas, choramos,
empunhamos bandeiras, enquanto milhares de seres humanos morrem de forme ao
nosso lado e não vertemos sequer uma lágrima por eles” (p. 156). “Não creio
em felicidade. Tenho alegria, força, bom ânimo e escrevo” (p. 194) “Peço a
vocês, meus queridos, que não me cremem. Que não destruam esse corpo que os
amou, que gerou filhos e poemas, que se quebrou como vaso de barro em vários
pontos. Cubram-me com um vestido de mangas longas e pintem meus lábios” (p.
200) “Somos sobreviventes quando continuamos vivos, depois de uma situação
desastrosa” (p. 213).
Não quero encerrar sem uma palavra sobre o
poema “Jardim Fechado”, uma beleza envolta em suave sensualidade onde tudo é
dito sem usar as palavras para dizê-lo. Seriam desnecessárias (pp. 186/188).
Comentar o livro de Raquel Naveira é um desafio. Cada viés dele
justificaria uma análise. Respingo aqui estas mal traçadas para que sobre
ele não reine o silêncio neste cantão de praia.
Deixo no ar uma
pergunta: a cronista é pessimista ou realista? Com a palavra o leitor.
E assim se fecha o leque.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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