Enéas Athanázio
O CAVALO DO BURACO |
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Eu devia andar pelos quinze anos. Numa tarde
ensolarada, munido de minha espingardinha picapau (*), ingressei na mata
cerrada que havia atrás das casas enfileiradas dos funcionários da Companhia
Americana. Era um terreno dobrado, cheio de subidas e descidas, coberto por
uma vegetação fechada que mexia com minha imaginação. O chão permanecia
úmido, coberto de folhas e galhos, como um tapete fofo que cedia às minhas
passadas. Partindo da estrada, fui entrando, entrando, subindo o morro
bastante íngreme. O mato foi se tornando mais denso, o sol não penetrava e
começou a escurecer. Alguns animais miúdos corriam e pássaros voavam,
assustados com a minha presença. Devo confessar que sentia algum medo, mas
nem pensava em recuar. Afinal eu era um homem ou um rato?
Vencido o
morro, comecei a descer do lado oposto. Foi então que ouvi bufos estranhos e
ruídos abafados. Correu-me um frio pela espinha e pensei em voltar, mas eu
nunca me perdoaria. Apertei a arma nas mãos e continuei avançando, creio que
tremelicando. Não tardei a avistar uma cena nunca imaginada. Havia no chão
um grande buraco redondo, quase entupido por galhos e folhas, e nele estava
caído um cavalo que eu conhecia e pertencia à Companhia, como tudo na Vila.
O animal estava meio de lado e não conseguia levantar. Quando firmava as
patas traseiras na borda do buraco ela cedia, a terra esfarinhava, e o pobre
animal voltava à mesma posição. Não conseguia firmar as patas dianteiras
porque afundavam na galharia e nas folhas que enchiam o buraco. Desesperado,
o cavalo deveria se sentir perdido.
Pensei como poderia ajudá-lo. Fui
até em casa e me muni de uma corda e um balde. Voltando às pressas, com o
coração ameaçando sair pela boca, enchi a vasilha de água numa pequena lagoa
e ofereci ao cavalo. Mesmo desajeitado, ele bebeu com sofreguidão, como se
tivesse acabado de cruzar um deserto. Depois passei-lhe a corda pelo pescoço
e tentei puxar. Ele se esforçava para ajudar mas nada conseguia. Passei a
corda pelas coxas e puxei quanto pude. Nada. Abalei então para a Vila em
busca de auxílio. A única pessoa que encontrei foi meu amigo Ary; todo mundo
estava no trabalho. Ele praticava acordeom na varanda da casa e os sons me
pareceram bem desafinados. Convidei-o e partimos os dois na missão salvadora
do animal acidentado. Passamos a corda pelo pescoço e depois pelo tronco
liso de uma árvore. Cada um puxava numa ponta para que a corda não
retrocedesse. Numa dessas puxadas em que colocamos toda a força, o cavalo se
firmou, levantou e saiu do buraco. Tinha um lado do corpo enlameado, bufava
de leve e movimentava as orelhas, assustado. Procuramos acalmá-lo e eu o
puxei até minha casa. No pátio dos fundos, lavei-o com muitas baldadas de
água, dei-lhe uma boa ração de milho e alfafa que ele devorou. Embora um
pouco manco de uma perna, não parecia ter ferimentos graves. Soltei-o depois
para que retornasse à liberdade.
Conversando com minha mãe, ela
sugeriu que aquele buraco redondo, como tantos outros, deveria ter sido
aberto por pessoas que produziam carvão vegetal, atividade depois proibida
pela Companhia.
No outro dia, um sábado, montei na minha bicicleta
Horimek e fui para o centro da Vila, misturando-me com amigos e amigas que
se reuniam numa espécie de clube montado no térreo de uma casa desocupada.
Havia música de vitrola, pequena biblioteca, jornais e revistas,
refrigerantes e cafezinho passado em coador de pano. Sanduíches, pastéis e
salgadinhos vinham da única padaria local. O pessoal dançava, conversava,
jogava, inventava brincadeiras e às vezes até brigava no tapa, sem maiores
consequências. Pelas tantas, cansado de conversa mole, voltei para casa. Lá
chegando, para minha surpresa, deparei com o cavalo diante do portão. Mal
abri, ele entrou sem a menor cerimônia e foi para o pátio dos fundos.
Dei-lhe água, milho e alfafa, depois passei a raspadeira, deixando o pelo
brilhando. Era um animal bonito e de postura impecável com a pelagem puxando
para o cinzento e as crinas quase negras. Levei-o até a casa do Quim Pitoco
e ele aparou os cascos e as crinas do animal. Depois soltei-o na estrada e
ele se afastou em passos lerdos como se estivesse contrariado. Nos dias
seguintes não apareceu.
Mas as férias chegavam ao fim e eu devia
retornar ao internato. Minha mãe preparou o enxoval e fez as malas. Levou-me
à estação e eu embarquei no trem misto da tarde. Sentei-me ao lado esquerdo
do vagão, aquele que dava para minha casa. Quando o trem arrancou avistei o
cavalo na frente do portão. Olhava para a frente e devia estar decepcionado
porque eu não aparecia.
Enquanto o trem fazia a longa curva costeando
a Serra da Pirambeira eu observava o cavalo e ele lá continuava. O trem
entrou no Corte do Agrião e a Vila ficou para trás.
Senti um peso no
peito e a tristeza invadiu meu coração, juntando-se a outras que já vinha
sentindo. Nas férias seguintes o cavalo não apareceu e por mais que
perguntasse não tive notícia dele.
Nunca mais o vi.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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