16/04/2021
Ano 24 - Número 1.218





ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


NO VALE DO GENGIBRAL

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Recordar é viver ou é sofrer duas vezes? Não sei qual das hipóteses é a verdadeira, mas o fato é que muitas pessoas, no meio literário, se entregam com afinco ao trabalho de escrever suas memórias. Grandes escritores têm lançado no papel os acontecimentos de suas existências, alguns deles obtendo aceitação incomum e se notabilizando com elas, a exemplo de Humberto de Campos, Gilberto Amado e Pedro Nava. No caso de Gilberto, o sucesso de suas memórias obscureceu o restante de sua obra, hoje em dia votadas ao esquecimento. Curioso é observar que memórias, autobiografias e biografias durante longo tempo não foram bem aceitas como se fossem um gênero literário inferior. Com o passar dos anos, porém, conquistaram seu espaço e se tornaram gêneros com inumeráveis leitores cativos, entre os quais me incluo.

Dentre as obras memorialistas recentes destaca-se “No Vale do Gengibral – Das terras da lendária dona Beja ao sertão de Goiás”, de autoria do escritor goiano Edir Meirelles e que me foi gentilmente oferecido por ele (Editora Kelps – Goiânia – 2017). Radicado no Rio de Janeiro, o autor é figura destacada da União Brasileira de Escritores (UBE/RJ), da qual foi presidente, e tem vários livros publicados, sem contar a volumosa produção jornalística. Neste livro dois aspectos merecem referência desde logo. O primeiro é o incessante crescimento da narrativa até seu clímax e o segundo a circunstância de que o autor-narrador abre o livro na condição de clandestino por ser perseguido político durante a ditadura. Assim, cria uma expectativa que só será desvendada nas derradeiras páginas. Recurso inteligente que prende o leitor até o fim.

Tudo tem início quando o jovem casal Orozimbo e Ibrantina afunda no cerrado goiano em busca de um local para estabelecer sua fazenda. Vencendo longas distâncias, em lombo de cavalo, vai dar nos ínvios de um vale inóspito e selvagem e ali decide fincar as raízes da família. O casamento deles havia sido “ajeitado” pelos pais. Desde então o casal inicia a luta árdua com a natureza e a fazenda prospera ao mesmo tempo em que nascem os filhos, entre estes o autor. Vida rústica, pobre, típica dos sertanejos, mas livre e feliz. O inesperado, porém, acontece e o pai falece aos 33 anos de idade, deixando a mãe com os filhos e sem maiores recursos. Logo surgem os pretendentes e um padrasto entra na família. Homem usurário ao extremo, inferniza a vida das crianças e tenta impedir que estudem. A mão forte da mãe, no entanto, equilibra a situação e todos buscam seu destino. É ela quem relata as peripécias da família, permitindo a reconstituição de todas as fases e que aparece sempre como pano de fundo das memórias do autor. O relato assume ares de um romance histórico e documental, tal a quantidade de fatos e detalhes trazidos ao texto.

A linguagem é escorreita, as frases bem construídas e as palavras aplicadas com correção, revelando um escritor tarimbado e dono da língua. O relato é bem encadeado e leva com segurança ao epílogo. No correr do texto ficou evidente para mim a semelhança com o falar aqui do Sul. Exceto alguns nomes de acidentes geográficos, plantas e expressões populares, não percebi diferenças. É um regionalismo mais de fundo que de forma, para usar a conhecida divisão.

O livro de Edir Meirelles é um trabalho escrito com sinceridade e emoção e por isso espelha mais que a vida porque, como dizia Gilberto Amado, literatura é mais que vida porque é a vida ampliada no coração do artista.


Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br  



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC





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