Enéas Athanázio
NO VALE DO GENGIBRAL |
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Recordar é viver ou
é sofrer duas vezes? Não sei qual das hipóteses é a verdadeira, mas o fato é
que muitas pessoas, no meio literário, se entregam com afinco ao trabalho de
escrever suas memórias. Grandes escritores têm lançado no papel os
acontecimentos de suas existências, alguns deles obtendo aceitação incomum e
se notabilizando com elas, a exemplo de Humberto de Campos, Gilberto Amado e
Pedro Nava. No caso de Gilberto, o sucesso de suas memórias obscureceu o
restante de sua obra, hoje em dia votadas ao esquecimento. Curioso é
observar que memórias, autobiografias e biografias durante longo tempo não
foram bem aceitas como se fossem um gênero literário inferior. Com o passar
dos anos, porém, conquistaram seu espaço e se tornaram gêneros com
inumeráveis leitores cativos, entre os quais me incluo.
Dentre as obras
memorialistas recentes destaca-se “No Vale do Gengibral – Das terras da
lendária dona Beja ao sertão de Goiás”, de autoria do escritor goiano Edir
Meirelles e que me foi gentilmente oferecido por ele (Editora Kelps –
Goiânia – 2017). Radicado no Rio de Janeiro, o autor é figura destacada da
União Brasileira de Escritores (UBE/RJ), da qual foi presidente, e tem
vários livros publicados, sem contar a volumosa produção jornalística. Neste
livro dois aspectos merecem referência desde logo. O primeiro é o incessante
crescimento da narrativa até seu clímax e o segundo a circunstância de que o
autor-narrador abre o livro na condição de clandestino por ser perseguido
político durante a ditadura. Assim, cria uma expectativa que só será
desvendada nas derradeiras páginas. Recurso inteligente que prende o leitor
até o fim.
Tudo tem início quando o jovem casal Orozimbo e Ibrantina
afunda no cerrado goiano em busca de um local para estabelecer sua fazenda.
Vencendo longas distâncias, em lombo de cavalo, vai dar nos ínvios de um
vale inóspito e selvagem e ali decide fincar as raízes da família. O
casamento deles havia sido “ajeitado” pelos pais. Desde então o casal inicia
a luta árdua com a natureza e a fazenda prospera ao mesmo tempo em que
nascem os filhos, entre estes o autor. Vida rústica, pobre, típica dos
sertanejos, mas livre e feliz. O inesperado, porém, acontece e o pai falece
aos 33 anos de idade, deixando a mãe com os filhos e sem maiores recursos.
Logo surgem os pretendentes e um padrasto entra na família. Homem usurário
ao extremo, inferniza a vida das crianças e tenta impedir que estudem. A mão
forte da mãe, no entanto, equilibra a situação e todos buscam seu destino. É
ela quem relata as peripécias da família, permitindo a reconstituição de
todas as fases e que aparece sempre como pano de fundo das memórias do
autor. O relato assume ares de um romance histórico e documental, tal a
quantidade de fatos e detalhes trazidos ao texto. A linguagem é
escorreita, as frases bem construídas e as palavras aplicadas com correção,
revelando um escritor tarimbado e dono da língua. O relato é bem encadeado e
leva com segurança ao epílogo. No correr do texto ficou evidente para mim a
semelhança com o falar aqui do Sul. Exceto alguns nomes de acidentes
geográficos, plantas e expressões populares, não percebi diferenças. É um
regionalismo mais de fundo que de forma, para usar a conhecida divisão.
O
livro de Edir Meirelles é um trabalho escrito com sinceridade e emoção e por
isso espelha mais que a vida porque, como dizia Gilberto Amado, literatura é
mais que vida porque é a vida ampliada no coração do artista.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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