Enéas Athanázio
UM LIVRO FASCINANTE |
|
Depois de longos anos, tive um
reencontro com uma figura exótica e genial: Toulouse-Lautrec. Isso
aconteceu nas páginas de um livro fascinante, de autoria de Pierre La
Mure, integrante da Academia Francesa, publicado no Brasil pela extinta e
saudosa Editora Mérito, responsável por um catálogo de primeira linha, em
tradução de Lígia Junqueira, tradutora respeitada pela perfeição de suas
versões. Trata-se de “Moulin Rouge” (S. Paulo – 1956).
Henri Marie
Raymond de Toulouse-Lautrec nasceu em Albi, na província francesa, em 24
de novembro de 1864. Era filho do Conde de Toulouse-Lautrec, integrante de
antiga linhagem aristocrática que remontava à liderança das Cruzadas, o
que constituía motivo de orgulho da família. O menino, portanto, era
conde, embora jamais usasse o título. Ele vivia com a mãe e a criadagem em
majestoso castelo dotado de luxo e conforto, uma vez que o pai, boêmio e
dandy inveterado, permanecia em Paris a maior parte do tempo. A condessa
proporcionava ao menino o mais dedicado tratamento e ele retribuía com
imenso e sincero amor. Já o pai, nas poucas visitas, planejava para o
filho um futuro de luxo e fama, como convinha a um membro da nobreza. Com
a mãe, o menino Henri desfrutava de uma vida agradável, com passeios,
viagens e toda sorte de diversões. Até que chegou a idade escolar e ele
teve que ser enviado à escola, acontecendo a primeira separação da mãe,
fato que o marcou de forma profunda. No colégio, porém, houve uma
compensação: conheceu Maurice, que seria dedicado amigo durante toda a
vida e com quem firmara o pacto de irmão de sangue.
O menino
crescia forte e bonito, revelando aguda inteligência. De repente, sem
razão plausível, começou a sentir fortes dores nas pernas e parou de
crescer. Não conseguia caminhar, permanecia acamado, gemendo sem parar.
Médicos do maior renome foram chamados mas não encontravam remédio para a
estranha moléstia. Recomendavam temporadas em estações de águas medicinais
e assim ele e a mãe peregrinaram por quantos balneários existiam na
França. Sem resultado. O menino só crescia da cintura para cima enquanto
as pernas, atrofiadas, permaneciam finas e fracas, só permitindo um andar
desajeitado, amparado numa bengala. À medida que os anos passavam,
constatava-se uma terrível realidade: Henri se tornou um anão desconforme
e muito feio, tanto de corpo como de rosto. Diante da cruel realidade o
pai se afastou do filho e só se encontrariam raras vezes ao longo da vida.
O conde se sentia frustrado nos projetos que arquitetara para o filho.
Mas a natureza, piedosa, concedeu uma compensação. Desde menino, Henri
revelava extraordinário talento para o desenho e estava sempre traçando
retratos de pessoas e paisagens. Esses trabalhos infantis provocavam a
maior admiração e grande parte deles se encontra hoje nos museus. Já moço,
Henri sentiu necessidade de um ambiente mais livre onde pudesse se dedicar
à arte. Contrariando a condessa, que temia pela sua saúde, parte para
Paris e se instala no bairro boêmio de Montmartre. Ali aprimora o desenho
e a pintura e passa a usar outras técnicas, inclusive a gravura.
Prepara-se para tentar o ingresso no “Salon”, a mais importante e
consagradora exposição da capital francesa, mas é recusado porque seus
quadros foram considerados muito revolucionários, retratando a vida
simples do povo. Enquanto isso, ele se entregava à boêmia, frequentando
todo tipo de casas de mulheres, desde as mais luxuosas até as mais
sórdidas, e chegando a morar por algum tempo em uma delas. Conhecia as
mulheres pelos nomes, tornou-se confidente de algumas e pintou os retratos
de muitas. Descobriu que a ingestão de conhaque aliviava sua dor nas
pernas e passou a consumir doses cada vez maiores da bebida, tornando-se
incurável dependente. Tomava grandes bebedeiras, caía e se machucava,
adormecia sobre as mesas de bar. Seu modo de vida escandaliza a nobreza;
ele encolhe os ombros e ri do falso pudor dos aristocratas. Torna-se
famoso, é reconhecido aonde vai e seus quadros começavam a aparecer nas
vitrines das galerias, despertando o interesse dos maiores marchands.
Convive com a ralé do bairro e retrata com insistência o cancan, dança
popularesca e sensual considerada imoral pelos conservadores. É visto
sempre numa roda de aspirantes a artistas, entre os quais se destaca
Vincent Van Gogh.
Numa dessas noitadas conhece um alsaciano de
nome Zidler que planejava a criação de uma boate sem similar em todo o
mundo e para a qual procurava o melhor. Bailarinas, atrizes,
recepcionistas, garçons, barmen, gente da retaguarda. Para isso erigiu um
prédio em formato de moinho, pintado de um vermelho vivo, iluminado de
maneira feérica, destacando-se no centro do bairro. Era o Moulin Rouge que
nascia, tornando-se desde logo uma das maiores atrações da capital e
repercutindo em todo o mundo. Henri se alistou entre os frequentadores
mais assíduos e lá pintava seus quadros inspirando-se em cenas vivas e
coloridas.
A boate, no entanto, começou a declinar. Zidler decide
promover intensa campanha publicitária e procura Henri. Quer que ele
desenhe e imprima um cartaz monumental em litografia, ou seja, impressão
na pedra, um dos gêneros mais difíceis da arte gravurista. Henri reluta,
Zidler insiste, o artista cede. Sem experiência, Henri se aproxima de Père
Cotelle, a maior autoridade no assunto, e passa a frequentar sua oficina.
Em pouco tempo dominou a técnica, causando geral espanto. E assim nasceu o
cartaz sobre o Moulin Rouge, colorido, vibrante, exibindo nítidas cenas de
cancan. Em poucos dias ele aparecia em paredes, muros e fachadas de toda
Paris e o nome de Toulouse-Lautrec caiu na boca do povo e nas colunas de
jornais.
– É indecente! – diziam. – É uma obra de arte! –
replicavam outros. – É imoral! – afirmavam muitos. – É uma
obra-prima! – bradavam outros tantos.
Os críticos se renderam à
beleza da obra e ao talento do artista, consagrando-os nas suas análises e
Henri entrou para sempre no mapa artístico francês. A campanha impulsionou
a obra de Henri, cujos quadros alcançaram elevados preços e começaram a
repercutir no exterior. E o Moulin Rouge se levantou e firmou.
Mas
se a carreira vai bem, os amores vão de mal a pior. Denise, o grande amor
da juventude, o repele com palavras ásperas, tachando-o de feto e
aleijado; Marie Charlet chega a viver com ele no estúdio, exigindo cada
vez mais um dinheiro que repassa ao gigolô, até que ele a expulsa; a linda
e suave Myriame o abandona sem explicações quando ele se encontrava no
exterior acompanhando uma de suas exposições. Solitário, só lhe resta o
amor mercenário das mulheres da vida. Amargurado, afunda no conhaque e
começa a definhar. Doente e fraco, refugia-se em Albi e se entrega aos
cuidados da mãe. A condessa se desdobra em tratamentos e atenções, mas
tudo é inútil. Ele não caminha mais e permanece acamado o tempo todo. Nos
dias derradeiros recebe a visita do pai, arrependido do abandono em que
deixara o filho infeliz.
Pouco antes de partir, Henri recebe um
telegrama de Maurice, o irmão de sangue:
“O governo acaba de
aceitar a coleção Camondo para o Louvre. Você venceu, Henri!”
Era
uma compensação final à recusa do “Salon”.
No silêncio de Albi,
diante de uma mãe desolada, desaparece um artista que o mundo todo venera.
Foi em 9 de setembro de 1901.
Tinha 37 anos de idade.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|