Enéas Athanázio
A SENHORA DE PARIS |
|
A escritora e poeta
Gertrude Stein (1874/1946) nasceu nos Estados Unidos mas esteve sempre
ligada à França e, mais particularmente, a Paris. Pertencente a uma
família alemã de judeus bem sucedidos, sua primeira estada em Paris foi
aos quatro anos de idade, fato de que ela se lembraria com saudade pelo
resto da vida. Mais tarde, já adulta, ela se fixou em definitivo na
capital francesa, em companhia do irmão, Léo Stein, com quem fundaria uma
grande editora. Depois se desentenderam, ele se afastou e acabou emigrando
para a Austrália. Ela e o irmão patrocinavam artistas e escritores que
necessitavam de apoio, mas todas as atenções convergiam para ela, uma
personalidade forte e dominante, Aos poucos ela se tornou uma espécie de
madrinha da classe artística, estabelecendo relações de amizade com
figuras de grande destaque, como Pablo Picasso, James Joyce e Ezra Pound.
Tornou-se uma figura poderosa, com grande influência no meio social, e sua
casa, à Rue des Fleurus, 27, se transformou num centro de reuniões de
artistas, escritores, jornalistas e personalidades. Ao mesmo tempo temida
e admirada, desde o início começou a colecionar obras de arte, em especial
pinturas, e sua casa se converteu num imenso museu. Segundo Hemingway, ela
recomendava às esposas dos escritores e artistas que não gastassem com
roupas reservando o dinheiro para a aquisição de quadros. Cercada pelos
artistas e escritores, dentre eles os americanos expatriados que viviam em
Paris, tinha como companheiros Alice Toklas e um cachorro. Sem a menor
cerimônia, emitia opiniões favoráveis ou contrárias sobre as obras
alheias, mesmo que os autores fossem seus amigos, o que a tornava muito
temida. Foi amiga de Hemingway mas a amizade se desgastou e acabou com o
correr do tempo. Segundo se sabe, foi ela quem batizou os escritores
americanos que se mudaram para Paris de “geração perdida”, frase que ela
teria ouvido de um mecânico. Seu poema “uma rosa é uma rosa é uma rosa” se
tornou célebre em todo o mundo porque ela desprezava as regras da língua
na linha de Joyce. Sylvia Beach, proprietária da célebre livraria
“Shakespeare and Company”, escreveu: “os pobrezinhos (artistas e
escritores) recorriam a mim, como se eu fosse alguma espécie de guia de
turismo, e imploravam para que os levasse para ver Gertrude Stein.” E
assim ela reinou por longos anos como a Senhora de Paris.
Dentre as
obras de Gertrude Stein, destacam-se os livros “Autobiografia de Alice
Toklas”, “Autobiografia de Todo Mundo” e “Paris França”, todos de grande
sucesso na época da publicação. Este último é um livro curioso e que
contém muito do pensamento e das observações da autora. Segundo a crítica
Inês Cardoso, trata-se de um livro circular, uma vez que aborda um
assunto, depois o abandona e retorna a ele outras vezes. É uma obra de
caráter memorialista porque relembra muito da vida da autora em Paris e
nas vilas do interior da França que costumava visitar. No correr do texto
ela faz interessantes comparações entre os séculos XIX e XX e as mudanças
acontecidas no mundo em cada um deles. O livro foi escrito durante a II
Guerra Mundial, portanto em tempo de guerra, e publicado em 1940, no
primeiro dia do cerco alemão à capital francesa. Segundo a crítica o livro
é uma escrita cubista, transpondo para as letras o que Picasso fazia nas
telas.
Gertrude Stein afirmava que o escritor necessita de dois
países, aquele onde nasceu e um segundo, ideal e romântico, em que de fato
vive. Parece que tinha razão, pois a “geração perdida” se impôs ao mundo
em Paris. É no segundo país que ele encontra a total liberdade de criação.
Paris, dizia ela, era o lugar certo para a pessoa (artistas e escritores)
estar. Os estrangeiros estão em casa na França porque lá artistas e
escritores são respeitados e merecem todas as deferências. Basta
envelhecerem um pouco e já são tratados como “mestres.” Escritor e pintor
têm privilégios, o que é muito agradável. Até numa oficina a mulher, o
homem de letras e o pintor têm preferência. Por causa do elemento
civilização, Paris sempre foi o lar dos artistas estrangeiros. Ela dizia
não entender certos intelectuais que apoiavam regimes de força que
fatalmente os perseguiriam e tornariam sua vida insuportável. Eu também
não, mas eles existem.
Encerrando o livro, Gertrude Stein dizia que
o Século XX acabaria sendo civilizado e transformado num tempo em que
todos poderiam ser livres para serem também civilizados. Escrevendo em
1940 ela não poderia prever as barbaridades do Século XX que nada tiveram
de civilizadas. Duas guerras mundiais com milhões de mortos, holocausto e
bomba atômica, a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, a Revolução
Cubana, as guerras de libertação de Angola, Moçambique, Argélia, outras e
outras guerras locais e regionais. Ditaduras sanguinárias em várias partes
do mundo, a exemplo das encabeçadas por Salazar, Franco, Stroessner,
Pinochet, Perón, Somoza, Duvalier, Médici etc. Gripe espanhola e AIDS.
Crises do tipo 1929, fome e miséria na África, imigração irregular e
clandestina para os países europeus. E no Brasil? Canudos, Contestado,
Revolução de 1930, Revolução Paulista, tentativas golpistas e golpe de
1964, as terríveis secas nordestinas e as enchentes do Sul. E tudo mais
que o leitor possa lembrar.
E o Século XXI, além da pandemia, que
mais nos reserva?
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|