Enéas Athanázio
VIAJANDO COM HEMINGWAY |
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Ao final da leitura vagarosa e atenta do terceiro volume dos “Contos de
Hemingway” (Bertrand Brasil – Rio – 1999), deparei com “Um país estranho”,
dos mais longos e pouco conhecidos contos do escritor norte-americano.
Segundo a editora, o conto seria a primeira versão de quatro capítulos do
futuro romance “As ilhas da corrente”, abandonada pelo escritor pelo fato de
ter o referido romance tomado novo rumo. Isso, no entanto, em nada
prejudicou a inteireza do conto, que se transformou numa peça independente,
de leitura rica e surpreendente, na qual o autor revela mis uma vez toda sua
técnica, inclusive no incomparável uso do diálogo.
Trata-se de um
conto de movimento, em primeira pessoa, em que o leitor acompanha o
personagem-narrador e sua companheira numa longa viagem num Buick
conversível de segunda mão. Percebe-se que ele é um homem maduro e vivido,
enquanto ela é mais jovem e no esplendor da beleza, ainda que isso não seja
formulado de forma expressa. A narrativa evolui entre longos trechos de
estrada, observando a natureza circundante, a flora e a fauna, as pessoas
avistadas e as cidades que cruzam. Há os pernoites em hotéis e as refeições
nos restaurantes, tudo realizado com muita calma e tranquilidade. E muitos
diálogos nos quais comentam os pequenos incidentes da prolongada travessia e
o relacionamento amoroso que os une.
Num repente, porém, o conto muda
do tom descompromissado dos viajantes para o campo memorialista do próprio
autor, isto é, de Ernest Hemingway, que coloca suas lembranças na boca do
personagem masculino e começa a relatar um fato verídico e conhecido de sua
vida. Encontrava-se ele em Lausanne, cobrindo como repórter uma conferência
internacional, quando pediu à esposa que fosse encontrá-lo para alguns dias
de férias juntos, após o compromisso. Com a intenção de lhe fazer uma
surpresa, ela colocou numa valise as pastas com os originais dos escritos
dele e também, por engano, aquelas que continham as cópias. Com o material
em mãos, ele poderia trabalhar durante aqueles dias de férias. Ela se
preparava para tomar o trem expresso na estação de Lyon, deixando a bagagem,
incluindo a valise, no compartimento próprio enquanto foi comprar jornais e
uma garrafa de água expostos numa mesinha próxima. E ao voltar, a surpresa e
a tragédia: a valise com todos os originais havia desaparecido! Desesperada,
ela fez tudo que podia: deu queixa à polícia, procurou, indagou, investigou
e... nada! A valise sumiu sem deixar vestígios. (Muitos anos depois, no Ritz
Hotel, em Paris, o gerente comunicou a Hemingway que havia no depósito um
volume à espera dele há muito tempo. Mas não era a valise encantada).
Não havendo outro recurso, ela viajou ao encontro do marido. Chorou e
chorou, sem coragem de relatar o ocorrido, mas acabou confessando. Hemingway
levou tal choque que esteve à beira da loucura. Todo o paciente e extenuante
esforço de anos e anos de trabalho havia se evaporado. Sua esposa diria,
mais tarde, que lamentou não existir alguma espécie de cirurgia para fazê-lo
esquecer do que acontecera. “Fiquei ali, sem me mexer, - escreveu ele – com
os travesseiros por amigos, em estado de desespero. Tudo o que eu tinha
escrito até então, e tudo em que eu tinha grande confiança, estava perdido.
Eu tinha reescrito aquilo tantas vezes até chegar aonde eu queria, e sabia
que não podia escrevê-los de novo...” (p. 412). Em outra passagem, diz o
seguinte: “Pus tudo neles (nos escritos perdidos), pus toda a informação que
podia incluir. Escrevi-os várias vezes até me sentir inteiro neles e vazio
dentro de mim. Por ter trabalhado em jornal desde muito jovem me habituei a
esquecer tudo depois de escrever: todos os dias limpa-se da memória o que se
escreveu como se limpa um quadro-negro com esponja ou um pano úmido. Eu
ainda tinha esse mau hábito, e agora ele se voltava contra mim” (p. 415).
E por fim:
“Esse vácuo, essa sensação de perda, é ruim. Mas não
mata. Já o desespero mata, e em pouco tempo.” (Idem).
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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