Enéas Athanázio
MAIS QUE UMA GUERRA |
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Ao amigo Carlos Adauto Vieira
Torres Pereira,
radicado em Chapecó, viveu uma experiência rara. Nascido em Lisboa, onde
residia, foi convocado, ainda muito jovem, para integrar a força
expedicionária enviada à África para combater os rebeldes na guerra de
independência de Moçambique. Colônia portuguesa (eufemisticamente denominada
de província ultramarina), aquele país foi tomado por uma onda nacionalista
que desejava a todo custo se desligar de Portugal. O governo português,
tendo à frente o ditador Salazar, se recusava a abrir mão da colônia,
alegando que a Constituição do país declarava unos os territórios da
metrópole e das colônias, ainda que descontínuos. O povo percebia que se
tratava de uma guerra perdida e que sua continuação implicaria em constantes
perdas de vidas de jovens soldados enviados para uma missão destinada ao
fracasso. Mas havia censura e o ditador insistia em manter o conflito.
Agora, depois de tantos anos, Torres Pereira decidiu rebuscar nos
escaninhos da memória e publicar o livro “Mais que uma guerra” (Edição do
Autor – Chapecó – 2019), revivendo dias sofridos nas selvas africanas às
voltas com toda espécie de perigos. Trata-se de um relato muito vivo e
coloquial, repassado de sentimento, que prende o leitor até a última página.
Por outro lado, revela um profundo conhecedor da história de Portugal e suas
possessões ultramarinas que foram se emancipando aos poucos e de forma
inevitável. Como ressalta ele, só em 1960, pelo menos quinze “novas nações”
proclamaram sua independência: Somália, Camarões, Togo, Sudão, Congo,
Nigéria, Senegal, Madagascar, Daomé, Chade, Gabão e Mauritânia. Com o slogan
de “A África será livre e unida” solicitava-se que a ONU incluísse em sua
Assembléia Geral a questão do ultramar português e a independência de
Angola. A intransigência em manter os domínios esbarrava no sentimento
independentista que varria o mundo.
Na pele do personagem Arriaga, o
autor relata o que foi a experiência por ele vivida, desde a partida no
navio “Vera Cruz”, o desembarque em Moçambique e a primeira jornada em
direção ao acampamento quando já encontram a estrada bloqueada com troncos e
são surpreendidos com uma saraivada de tiros que vêm da mataria fechada. São
os guerrilheiros anunciando sua presença. Mas chegam ilesos ao acampamento,
depois de uma vigorosa resposta a tiros de metralhadora, e vivem em
constante suspense e sujeitos a ferozes ataques. Ali permanecem, realizando
as mais perigosas missões, convivendo com os ataques de surpresa, as minas
terrestres, os incêndios provocados e as emboscadas. É ferido numa dessas
ações e recolhido ao hospital. Logo se recupera e volta às atividades.
Mas a guerra está perdida. Os revoltosos dominam o norte do país,
enquanto a companhia de Arriaga é rendida por outra e ele e seus amigos
Cosme e Arouca são dispensados. A história segue seu curso e Moçambique é
entregue à FRELIMO cujo chefe, Samora Machel, implanta a República Popular
de Moçambique. O prometido referendum entre a população local não é
realizado. Um violento sentimento anti-português explode no país e tudo que
tem relação com Portugal é repudiado. Até estátuas homenageando figuras
históricas são apeadas. Legiões de pessoas, em longas caravanas, deixam o
país. Lourenço Marques, a capital, passa a se chamar Maputo.
O saldo
da guerra é macabro. Foram milhares de jovens que perderam a vida, sofreram
ferimentos de todos os tipos e sofreram os horrores de uma luta sem trégua em
plena selva. Sem falar nos gastos com material bélico que poderiam ter melhor
destino em favor do povo. Tudo graças ao criador do chamado Estado Novo cujas diretrizes foram estabelecidas na Constituição salazarista por
ele inspirada.
Por fim, como explicar tanto ódio aos portugueses?
Vamos dar a palavra ao autor: “O que muito nos admira, é de que maneira, por
séculos, Portugal conseguiu passar por bom menino na Guiné, Angola e
Moçambique, sabendo-se que a realidade era outra: a começar pelo abandono e
exploração das populações locais, que pouco mudou desde a época dos
descobrimentos” (p. 29). E mais: “Só que não soubemos tirar proveito duma
situação que tinha tudo para dar certo. A de dialogar mais e cuidar melhor
das populações sob nossa jurisdição. A de dar um basta ao trabalho escravo
nas grandes fazendas e implodir, de uma vez por todas, com a figura sinistra
do latifundiário, escravocrata, melhor dizendo. Ao invés disso, que fizemos?
Preferimos não prestar a devida atenção a esses e outros problemas que se
iam agigantando à medida que os anos passavam A acreditar que, o que,
vínhamos fazendo há séculos de errado, era o certo” (pp. 40/41).
A
história não perdoou.
É interessante indagar se o exemplo de
Moçambique serviu de lição a outros governantes. Parece-me que não.
O
livro de Torres Pereira é recheado de memórias do autor, travestido em
Arriaga, desde a infância.
É uma leitura que vale a pena.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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