Enéas Athanázio
POR AMOR À MÚSICA |
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Ao amigo Carlos Adauto Vieira
Com origens siberianas,
Dmitri Shostakovich (1906/1975) nasceu em São Petersburgo em uma família de
antigas tradições revolucionárias e de acentuada tendência musical. Desde
seu avô, vários membros da família participaram de algumas das tantas
insurreições populares que marcaram a história russa. Por outro lado, o amor
e o cultivo da música foram uma constante, e sua mãe, Sonya, mulher de
grande coragem, foi extraordinária pianista e liderou a família com
habilidade e valentia, mesmo nos momentos em que esteve beirando a miséria.
Desde cedo percebeu a genialidade do filho e o estimulou sempre na busca da
realização artística. Graças a ela o clã familiar se manteve unido e ativo.
No período pós-revolucionário, nos anos posteriores a 1917, o país viveu
tempos aflitivos. Toda a economia se desorganizou em virtude da mudança de
regime e as carências se sucederam. Foram dias, meses e anos de privações,
racionamento, desabastecimento, frio e medo. O desemprego campeava, enquanto
se multiplicavam os boicotes, as sabotagens e toda sorte de resistência à
implantação do novo sistema econômico. Havia desemprego e os salários eram
miseráveis. Apesar de tudo, porém, os Shostakovih lutavam com bravura pela
sobrevivência e nunca deixaram de cultivar a música. O jovem Dmitri, chamado
de Mitya pelos familiares, aos treze anos de idade já se revelava exímio
pianista e até realizava pequenas composições musicais.
Dotado de
constituição frágil, embora de postura elegante, o rapaz estudava e
estudava. Frequentou aulas particulares com mestres renomados, fez cursos em
escolas famosas e passou por importantes conservatórios. Seu talento era
exaltado e suas produções musicais começaram a aparecer e despertar vivo
interesse. Grandes maestros e virtuoses por elas se interessaram e a crítica
as aclamou. Suas obras passaram a ser apresentadas em São Petersburgo,
Moscou a outras cidades europeias, sempre atraindo numeroso público e
merecendo o aplauso dos “experts.” Já casado, Dmitri melhorou de condição
financeira e passou a desfrutar uma vida de fausto e luxo, desaprovada pela
mãe, cujo senso prático não via aquilo com bons olhos. Apesar do sucesso,
ele se torna nervoso e irritadiço, não poupando nem mesmo os familiares.
Tudo corria bem, sua obra estava consagrada, a vida prosseguia numa linha
ascendente. Mas, como raios que caem do céu sem aviso, dois editoriais do
“Pravda”, jornal oficial do governo e do partido, o fulminam. Com mão
pesada, a censura o acusa de produzir obra burguesa, afastada dos interesses
do povo e, portanto, condenável. Usando das costumeiras frases feitas e
expressões de sentido duvidoso, os censores reprovam suas produções, em
especial a ópera “Lady MacBeth do Distrito de Mzensk”, sobre a qual recai o
ódio virulento da censura. Nela o compositor procura tornar simpática a vilã
de um conto célebre, o que parece ter irritado o todo-poderoso Stálin, cuja
mão era sentida por detrás dos editoriais. Pareciam entender que a
edulcoração de uma criminosa não ficava bem, ainda mais no exterior, no
contexto da Guerra Fria.
Em consequência, Dmitri cai no ostracismo. Suas
obras são retiradas dos repertórios, perde as mordomias, é forçado a tocar
nos cinemas, como outrora, e permanece esquecido por longo tempo. Mais
tarde, após a morte de Stálin, reconquista sua posição, recupera o espaço e
sua música volta a ser executada, não apenas na Rússia mas em todo o mundo.
Desde então é colocado entre os grandes compositores da música universal.
Foi autor de 59 composições de elevado sentido musical, segundo relações
efetuadas por seus biógrafos, entre eles Victor Seroff, cujo livro foi
traduzido por Guilherme de Figueiredo e publicado no Brasil, com excelente
prefácio de Mário de Andrade. Nessa relação não estão incluídas as obras que
permanecem em manuscrito.
Apesar das dificuldades e dos tropeços, o gênio
de Dmitri Shostakovich se realizou na plenitude e sua obra é reverenciada em
todo o mundo pelos apreciadores da boa música.
Outro excelente livro
sobre o compositor é “O ruído do tempo”, de autoria de Julian Barnes, um dos
expoentes da moderna literatura britânica (Editora Rocco – Rio de Janeiro –
2017). Nele o autor revela o sofrimento de Shostakovich, espírito sensível,
diante da pressão a que foi submetido antes e depois da reabilitação. Teve
que ler discursos que não escreveu, assinar artigos que não eram escritos
por ele, fazer declarações que contrariavam seu pensamento e se conformar
com uma vigilância permanente. Nomearam-lhe até mesmo um orientador com o
objetivo de “reeducá-lo.” Em certa fase, temendo ser preso a qualquer
momento, permanecia horas a fio em pé, diante do elevador e com a mala na
mão para poupar a esposa de um trauma ao ser retirado da cama na calada da
noite, como acontecia com frequência. Estarrecedor.
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e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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