Enéas Athanázio
PITIGRILLI |
|
Como tantos escritores que desfrutaram de grande popularidade, Pitigrilli
anda esquecido. Nascido Dino Segre (1883/1975), adotou o pseudônimo cantante
com o qual se consagrou e que usou até falecer, em Turim, onde veio à luz e
morou a maior parte da existência. Como auto-exilado, residiu por algum
tempo na Argentina, porque “gostava de por os pingos nos ii no que escrevia”
e, em conseqüência, o ar da Itália estava ficando denso em demasia. Como
sempre, ao longo da História, a pena dos escritores incomodava os mandões do
momento.
Segundo relatou em suas memórias, “Pitigrilli fala de
Pitigrilli”, saiu de casa, certa manhã, com a intenção de se matricular no
curso de medicina. Como a fila estava muito longa, acabou se matriculando na
Faculdade de Direito, ainda que jamais tivesse a menor intenção de fazer uso
do diploma. Não tardou a se destacar como cronista, contista e romancista, e
seus livros obtiveram grande aceitação, impulsionados também pela figura
curiosa e carismática do próprio autor. Vários de seus livros se
transformaram em best-sellers mundiais e conquistaram considerável público
no Brasil, onde foram traduzidos e publicados pela extinta Editora Vecchi,
do Rio de Janeiro.
Entre suas obras mais conhecidas alinham-se “A
loura dolicocéfala”, cujo título vulgarizou a expressão e a colocou na boca
do povo, “Cocaína”, no qual descreveu com humor e acuidade suas experiências
com o uso da droga, fato raro na época, “Pitigrilli fala de Pitigrilli”,
autobiografia escrita com ironia e onde revelou, ao final, suas preocupações
místicas e certa inclinação pelo espiritismo. Publicou ainda um volume de
crônicas saborosas, dentre as quais se destaca “ite” e “ose”, comentando as
enfermidades agudas e crônicas, reais e imaginárias. Também fez sucesso
entre nós o romance “O farmacêutico a cavalo”, tremenda sátira aos heróis
consagrados, em especial nas pequenas comunidades. Traduzido por Marina
Guaspari, renomada tradutora da época, foi publicado em 1951 num daqueles
feios volumes da Editora Vecchi, em papel escuro, áspero e grosso.
romance relata a história de uma cidade que, de repente, se deu conta de que
não possuía nenhuma estátua glorificando algum herói da terra. Começam,
então, as discussões sobre o local e o tipo do monumento a ser erigido em
praça pública. Ficou decidido que seria uma estátua equestre, como convém a
toda cidade que se preze, esculpida em puro bronze, de preferência com o
homenageado apontando a espada para o alto. Muitos e inflamados foram os
debates mas, afinal, chegou-se ao consenso. As dificuldades surgiram mesmo
na escolha do conterrâneo a ser homenageado, ou melhor, em encontrá-lo. O
primeiro foi descartado porque se descobriu que era estrangeiro; o segundo
foi deixado de lado porque não gozava de reputação ilibada; o terceiro,
enfim, havia escrito coisas ofensivas à cidade. E assim, de exclusão em
exclusão, chegaram à melancólica conclusão de que não havia a quem
homenagear. Até que alguém, num rasgo salvador, se lembrou do farmacêutico,
cidadão pacato, ilibado, trabalhador, acima de qualquer suspeita. Mas um
farmacêutico a cavalo numa estátua em praça pública? Absurdo! Depois de
novas e intermináveis discussões, a explicação foi encontrada: o cavalo
estaria com as patas dianteiras dobradas, como se estivesse inclinado, e seu
cavaleiro com os olhos fitos no solo. Como cientista e pesquisador da
farmacologia, estaria procurando ervas naturais que pudessem enriquecer suas
curativas poções medicinais. E, naturalmente, a espada foi esquecida.
Dessa forma, entre vivas e discursos, foi encontrada solução. A cidade
orgulhosa passou a contar com uma grande estátua equestre no principal
logradouro, inaugurada com muita solenidade, homenageando um filho modesto
mas legítimo e inatacável. É claro que a cidade em questão não era
brasileira; aqui teríamos heróis aos montes e a dificuldade seria decidir
qual deles ocuparia o honroso posto.
Para evitar que o leitor
apressado vá direto ao desenlace, o romance tem a curiosidade de começar
pelo capítulo sexto e todos os demais estão fora de ordem. Essa tática
nasceu ao ver uma leitora, no bonde, abrindo com espátula as páginas finais
de um livro, desprezando todo o esforço do autor para armar o seu enredo.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|