Enéas Athanázio
A PALAVRA ABSOLUTA |
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Diplomata, escritor e linguista, William Agel de Mello se tornou amigo
íntimo de Guimarães Rosa. Ao ingressar na carreira diplomática, foi
designado para o Serviço de Demarcação de Fronteiras, cujo chefe era ninguém
menos que o autor do “Grande Sertão: Veredas.” Do convívio cotidiano brotou
uma amizade que duraria até a morte prematura do grande escritor. Uma vez
por semana comiam juntos em um dos restaurantes árabes próximos do
Itamaraty. E, como se imagina, conversavam e conversavam.
Depois,
William vai servir em Barcelona, como cônsul. Nessa época Rosa estava às
voltas com a tradução de suas obras para o castelhano e a presença do amigo
na Espanha não poderia ser mais oportuna. Escreve-lhe então um punhado de
cartas que constituem uma preciosidade e que foram reunidas pelo
destinatário num pequeno livro que é uma obra-prima pelo conteúdo e pela
forma: “Cartas a William Agel de Mello”, publicado por Ateliê
Editorial/Editora Giordano (S. Paulo – 2003).
As cartas têm a marca
de Guimarães Rosa tanto pela linguagem como pela criatividade. “O que
particulariza a obra de Guimarães Rosa é a linguagem – observa o
destinatário das cartas. – Lançava mão do recurso às rimas, assonâncias e
aliterações de forma sui generis. Com seu estilo personalíssimo, quebrava o
princípio lógico, ia de encontro ao tradicionalismo, abominava o
lugar-comum.” De fato, basta fixar o olhar sobre as cartas para enxergar
Guimarães Rosa. E isso me faz lembrar do lançamento de “Grande Sertão:
Veredas.” Segundo os críticos da época, o livro provocou um abalo sísmico na
literatura daqueles dias. Os analistas ortodoxos ficaram desconcertados,
perplexos, não sabendo se vaiavam ou aplaudiam. Também se percebe nas
missivas a permanente busca da palavra exata para cada frase. Nada de
semelhanças ou parecenças, haveria de ser precisa, insubstituível. Ou seja,
a palavra absoluta.
Quanto ao conteúdo, as cartas são inigualáveis.
Rosa inventa, cria, altera. Iô, Wi, Williãozinho, Williãozão,
discipulérrimo, catalão de Goiás, provecto, conciliabulíssimo, discípulo
inaceitável, probo e coroável, discipulante, barcelonês, eis alguns dos
tratamentos que dispensa ao amigo distante. Mas trata também de assuntos
pessoais e cobra ação para que William apresse editores e tradutores. Caso
contrário, “renego-te, perespirio-te, desfraso-te, transblasfemo-te...Olha,
hem?” E ficou esperando até que o outro “botasse isso a limpo.”
William contribuía com muito trabalho para a realização da obra do Mestre ou
Maestro, como chamava o escritor. Lia em voz alta os textos enquanto Rosa,
caneta na mão, ouvia e tomava notas, buscando o melhor resultado auditivo.
(Como Monteiro Lobato também fazia). “Conforme a entonação, o Mestre
interrompia a leitura, tomava notas – e depois modificava a frase ou a
palavra. Dizia ele que era um “espírito” que o avisava para melhorar o
texto. Sua eterna busca da perfeição, “a palavra absoluta.”
Surgem
ainda fatos do dia-a-dia, referências a amigos, colegas e parentes,
invocação de personagens da obra de William, acontecimentos do cenário
mundial, recordações e saudades, muitas saudades do jovem amigo ao mesmo
tempo ausente e presente. Trata-se, enfim, de um documento literário e
biográfico sem igual do grande recriador dos sertões mineiros e goianos.
Constitui ainda uma bela homenagem ao amigo mais jovem tantas e tantas vezes
citado das mais carinhosas formas.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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