16/09/2019
Ano 22 - Número 1.141
 


ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


A HONRA DA FAMÍLIA

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Para Márcia, Eneida e Patrícia,
que não arredaram pé, e para
Jandira, sempre junto
(Escrito no hospital)


A Fazenda do Aranha ocupava um mundaréu de terras. Principiava no caminho geral do Portão do Alto e descambava em campos de coxilhas e canhadas no rumo do Taimbé. Dividia-se em grandes invernadas de cria e engorda de gado, cavalos e mulas, ovelhas e cabras em quantidade. Para as bandas da geral conservava-se um mato inceiro, onde farfalhavam numerosos pinheiros e madeiras de lei, mantidos como reserva. Ali uma porcada meio alçada pelichava de gorda na safra do pinhão. A Fazenda era uma propriedade de respeito, tinha aguadas suficientes e era bem administrada.

A sede se erguia no alto de um coxilhão verdejante de grama, sólido casarão construído de madeira de lei cerrada em lua própria. Pintada de um azul brilhante, os vidros de suas numerosas janelas e portas retiniam à luz do sol e lançavam chispas à distância. Diante dela corria uma área coberta, larga e espaçosa, onde se alinhavam cadeiras confortáveis, avistando-se dali o panorama que se estendia pela campanha até se juntar com o horizonte do céu azulado. Cercava a casa um jardim sempre florido e bem cuidado no qual estava presente a mão cuidadosa da própria fazendeira.

A Fazenda do Aranha pertencia à mesma família há três gerações, conduzida com mão firme pelo fazendeiro conhecido como Nenê Grande, assim chamado para distinguir de um parente apelidado Nenê Pequeno. Nenê Grande vivia em paz, cuidando dos seus negócios, em companhia da esposa, mulher caprichosa e dedicada, de um filho solteiro de seus vinte anos e a filha caçula de nome Doralinda, tratada pelos íntimos como Linda. Tinha como capataz de fiança um lageano por nome Dorvalino, sojeito de pouca prosa e sorrisos raros, que comandava um ror de peões bem treinados que cuidavam da propriedade com muito zelo.

Nenhuma preocupação grave toldava os dias pacíficos do fazendeiro cujos negócios progrediam, permitindo novas compras de terras com os lucros obtidos. Apenas o comportamento da filha Linda, nos seus dezesseis anos, chamava sua atenção. A moça se interessava pelas festas, encontros com amigos e bailarecos na vila do Pito Aceso e nas fazendas em derredor e lá sempre comparecia, acompanhada pela mãe ou por uma cria de confiança da casa. Atento, o pai acompanhava esse movimento, recomendando sempre a maior atenção.

Nos últimos tempos notou admirado que o interesse da filha por essas festas e encontros havia desaparecido. Não revelava mais o desejo de frequentá-las, preferindo permanecer em casa. O pai aguçou as observações e surpreendeu certas conversas meio murmuradas entre a mãe e a filha sobre assuntos que não conseguiu distinguir. Preocupado, fechou-se com a mulher num quarto e a botou em confissão. Estarrecido, soube que a menina estava grávida de um bundinha da cidade com o qual vinha namorando. O fazendeiro ficou furioso, seus olhos pareciam lançar chispas e teve uma conversa muito séria com a filha que acabou confessando o seu descuido e confirmando que o namorado era mesmo o rapaz da cidade.

Nenê Grande, diante da confirmação do fato, esbravejava, andando pela casa e batendo com o rabo de tatu nos canos das botas. Como se atrevia aquele guri a manchar a honra da casa! Isso não poderia ficar assim! A mulher tudo fazia para acalmá-lo, mas ele afirmava que a atitude merecia uma resposta enérgica. Sem mais conversa intimou o capataz Dorvalino ao escritório e passou ordens diretas.

No dia seguinte, muito cedo, o capataz e mais quatro homens escolhidos entre os peões mais valentes, encilharam as montarias para uma jornada até a cidade. Vestidos nos trinques, montados em animais aperados no capricho e todos armados de revólveres, partiram no cumprimento da missão determinada pelo patrão. Foi bonito de ver a cavalhada levantando poeira na estrada de chão batido no rumo de São Simão. Postado na área, o fazendeiro observava a partida de seus homens, enquanto a mulher desesperada procurava demovê-lo daquela ideia.

A entrada do grupo nas ruas da pacata cidade logo chamou a atenção dos raros transeuntes. Firmes no trote dos animais, os homens do Aranha não tardaram a encontrar a casa onde o namorado da filha residia com os pais e logo se postaram diante dela, um ao lado do outro, na frente da cerca dianteira. Em voz firme o capataz Dorvalino interpelou os moradores:

- Ô de casa!

As pessoas se movimentaram e o dono da casa, com jeito assustado, apareceu na porta e deu com a tropa de cavaleiros enfileirados à sua frente.
- Chame o seu filho! – gritou o capataz Dorvalino com voz firme.

Atrapalhado, o dono da casa se voltou para dentro e chamou o filho aos berros para que aparecesse e ele surgiu ressabiado, ainda arrumando a cabeleira desgrenhada e com cara de muito sono, perguntando o que estava acontecendo.

Dorvalino em poucas palavras explicou que lá se encontrava com ordens expressas de marcar a data para o casamento e assim lavar a honra da casa de Nenê Grande. Pai e filho, temerosos das conseqüências, conversaram em voz baixa enquanto as demais pessoas da casa se juntavam a eles. Confabularam às pressas e discutiram o assunto até se fixarem numa data em que o casamento deveria ser realizado. Diante da palavra empenhada, Dorvalino e seus companheiros se retiraram, deixando para trás a família perplexa do rapaz.

Tempos depois o casamento foi realizado com toda pompa e circunstância. Nenê Grande comandava a sua gente, montado no burro preto da estima, tendo ao lado a mulher no seu cavalo tordilho e do outro a noiva na sua montaria preferida. Atrás, todos enfileirados, desfilavam os peões da fazenda seguidos de numerosos convidados.

E assim a honra da família de Nenê Grande foi lavada em público.
 

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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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