Enéas Athanázio
A HONRA DA FAMÍLIA
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Para Márcia, Eneida e Patrícia, que não arredaram pé, e para
Jandira, sempre junto (Escrito no hospital)
A Fazenda do
Aranha ocupava um mundaréu de terras. Principiava no caminho geral do Portão
do Alto e descambava em campos de coxilhas e canhadas no rumo do Taimbé.
Dividia-se em grandes invernadas de cria e engorda de gado, cavalos e mulas,
ovelhas e cabras em quantidade. Para as bandas da geral conservava-se um
mato inceiro, onde farfalhavam numerosos pinheiros e madeiras de lei,
mantidos como reserva. Ali uma porcada meio alçada pelichava de gorda na
safra do pinhão. A Fazenda era uma propriedade de respeito, tinha aguadas
suficientes e era bem administrada.
A sede se erguia no alto de um
coxilhão verdejante de grama, sólido casarão construído de madeira de lei
cerrada em lua própria. Pintada de um azul brilhante, os vidros de suas
numerosas janelas e portas retiniam à luz do sol e lançavam chispas à
distância. Diante dela corria uma área coberta, larga e espaçosa, onde se
alinhavam cadeiras confortáveis, avistando-se dali o panorama que se
estendia pela campanha até se juntar com o horizonte do céu azulado. Cercava
a casa um jardim sempre florido e bem cuidado no qual estava presente a mão
cuidadosa da própria fazendeira.
A Fazenda do Aranha pertencia à
mesma família há três gerações, conduzida com mão firme pelo fazendeiro
conhecido como Nenê Grande, assim chamado para distinguir de um parente
apelidado Nenê Pequeno. Nenê Grande vivia em paz, cuidando dos seus
negócios, em companhia da esposa, mulher caprichosa e dedicada, de um filho
solteiro de seus vinte anos e a filha caçula de nome Doralinda, tratada
pelos íntimos como Linda. Tinha como capataz de fiança um lageano por nome
Dorvalino, sojeito de pouca prosa e sorrisos raros, que comandava um ror de
peões bem treinados que cuidavam da propriedade com muito zelo.
Nenhuma preocupação grave toldava os dias pacíficos do fazendeiro cujos
negócios progrediam, permitindo novas compras de terras com os lucros
obtidos. Apenas o comportamento da filha Linda, nos seus dezesseis anos,
chamava sua atenção. A moça se interessava pelas festas, encontros com
amigos e bailarecos na vila do Pito Aceso e nas fazendas em derredor e lá
sempre comparecia, acompanhada pela mãe ou por uma cria de confiança da
casa. Atento, o pai acompanhava esse movimento, recomendando sempre a maior
atenção.
Nos últimos tempos notou admirado que o interesse da filha
por essas festas e encontros havia desaparecido. Não revelava mais o desejo
de frequentá-las, preferindo permanecer em casa. O pai aguçou as observações
e surpreendeu certas conversas meio murmuradas entre a mãe e a filha sobre
assuntos que não conseguiu distinguir. Preocupado, fechou-se com a mulher
num quarto e a botou em confissão. Estarrecido, soube que a menina estava
grávida de um bundinha da cidade com o qual vinha namorando. O fazendeiro
ficou furioso, seus olhos pareciam lançar chispas e teve uma conversa muito
séria com a filha que acabou confessando o seu descuido e confirmando que o
namorado era mesmo o rapaz da cidade.
Nenê Grande, diante da
confirmação do fato, esbravejava, andando pela casa e batendo com o rabo de
tatu nos canos das botas. Como se atrevia aquele guri a manchar a honra da
casa! Isso não poderia ficar assim! A mulher tudo fazia para acalmá-lo, mas
ele afirmava que a atitude merecia uma resposta enérgica. Sem mais conversa
intimou o capataz Dorvalino ao escritório e passou ordens diretas.
No
dia seguinte, muito cedo, o capataz e mais quatro homens escolhidos entre os
peões mais valentes, encilharam as montarias para uma jornada até a cidade.
Vestidos nos trinques, montados em animais aperados no capricho e todos
armados de revólveres, partiram no cumprimento da missão determinada pelo
patrão. Foi bonito de ver a cavalhada levantando poeira na estrada de chão
batido no rumo de São Simão. Postado na área, o fazendeiro observava a
partida de seus homens, enquanto a mulher desesperada procurava demovê-lo
daquela ideia.
A entrada do grupo nas ruas da pacata cidade logo
chamou a atenção dos raros transeuntes. Firmes no trote dos animais, os
homens do Aranha não tardaram a encontrar a casa onde o namorado da filha
residia com os pais e logo se postaram diante dela, um ao lado do outro, na
frente da cerca dianteira. Em voz firme o capataz Dorvalino interpelou os
moradores:
- Ô de casa!
As pessoas se movimentaram e o dono
da casa, com jeito assustado, apareceu na porta e deu com a tropa de
cavaleiros enfileirados à sua frente. - Chame o seu filho! – gritou o
capataz Dorvalino com voz firme.
Atrapalhado, o dono da casa se
voltou para dentro e chamou o filho aos berros para que aparecesse e ele
surgiu ressabiado, ainda arrumando a cabeleira desgrenhada e com cara de
muito sono, perguntando o que estava acontecendo.
Dorvalino em poucas
palavras explicou que lá se encontrava com ordens expressas de marcar a data
para o casamento e assim lavar a honra da casa de Nenê Grande. Pai e filho,
temerosos das conseqüências, conversaram em voz baixa enquanto as demais
pessoas da casa se juntavam a eles. Confabularam às pressas e discutiram o
assunto até se fixarem numa data em que o casamento deveria ser realizado.
Diante da palavra empenhada, Dorvalino e seus companheiros se retiraram,
deixando para trás a família perplexa do rapaz.
Tempos depois o
casamento foi realizado com toda pompa e circunstância. Nenê Grande
comandava a sua gente, montado no burro preto da estima, tendo ao lado a
mulher no seu cavalo tordilho e do outro a noiva na sua montaria preferida.
Atrás, todos enfileirados, desfilavam os peões da fazenda seguidos de
numerosos convidados.
E assim a honra da família de Nenê Grande foi
lavada em público.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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