Enéas Athanázio
INCIDENTE NATALINO
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Naquela manhã, quando saía de casa, Neco
estava feliz. Sentia-se leve e tranquilo como poucas vezes acontecera.
Chegando à área que se abria para a praça, contemplou do alto a cidade
parada e silenciosa naquele começo de dia de Natal. Estendeu o olhar pela
campanha que cercava a cidade e se admirou com o verde vivo que reverberava
à luz do sol e que em geral não observava, envolvido nas ocupações e
negócios. Permaneceu por alguns momentos entregue àquela muda contemplação e
depois desceu devagar os dois lances de escada que o separavam do solo. Na
rua, envergando roupas novas e bem talhadas, caminhou em passos lentos até a
avenida principal, cumprimentando sorridente os conhecidos com quem cruzava.
Entrou, afinal, na floricultura que ainda abria as portas e adquiriu um
ramalhete de flores para a mulher. Ela, com certeza, gostaria da gentileza,
atitude frequente no passado e que aos poucos se tornou rara. Sem dúvida,
ela merecia!
Retornando para casa, meio sem jeito, com as flores na
mão, ruminava bons pensamentos. A empresa estava bem, o ano fora positivo
para os negócios, o filho, ainda garoto, se revelou um bom aluno e a mulher
continuava bonita e sensual. Aconteceram algumas confusões, entre elas o
boato de que havia falado mal do padre vigário e ele tentara processá-lo,
além de desancar os linguarudos num sermão raivoso de domingo. Os
comentários foram maldosos, provocaram grande tensão, mas tudo acabou em
nada. Também aconteceu o atropelamento da carroça com o velhinho que a
conduzia, quando dirigia um calhambeque que estava a seus cuidados. Depois
de muita discussão, o caso se resolveu a contento, ainda que desembolsando
boa quantia. Ah! – lembrou de repente – houve a discussão (ele dizia
discutição) com certo Arcidioso, tido e havido como perigoso, mas ele o
enfrentou de revólver em punho e o outro fugiu com o rabo entre as pernas.
Problemas menores ainda aconteceram, como é natural no correr da vivência.
Agora, passado o tempo, todos se tornaram motivo de piadas e brincadeiras.
Em casa, Neco almoçou com a esposa e, depois de um bom descanso,
começaram a beber. Aproveitando a ausência do filho que se encontrava em
viagem, passando os festejos com os avós, avançaram nos brindes e empinaram
consideráveis doses de champanhe. Depois se recolheram ao banheiro, encheram
a enorme banheira de água espumante e se entregaram às carícias e ao amor.
Ele enchia as taças e estimulava a mulher a beber. Ela já dava mostras de
embriaguez, não tinha o hábito de beber, mas continuava ingerindo a bebida,
estendida na banheira, lânguida e sonolenta, o corpo nu relaxado dentro da
água tépida. Para estimulá-la, ele a puxou para baixo pelo dedo do pé,
fazendo com que escorregasse, submergindo. Ela levantou a cabeça, tossindo a
água que engoliu e rindo molemente. Outras doses foram tomadas e Neco
repetia a perigosa brincadeira, puxando a mulher para baixo e fazendo-a
submergir. E assim as mesmas manobras se repetiram até que, tomado por um
repentino sentimento maligno, ele a manteve por mais tempo em baixo da água
espumante. Só então, alarmado, percebeu que a mulher não voltava e nem se
movia. Desesperado, puxou-a para fora e compreendeu num instante que fora
longe demais. Ela não respirava; estava morta.
Tentou de todos os
modos reanimá-la. Massagens no peito e nas costas, respiração boca-a-boca,
tapinhas no rosto. Tudo inútil. O corpo bronzeado e sensual não tinha sinais
vitais e permaneceu inerte sobre o tapete onde ele o colocou.
Tomado
de desespero, saiu gritando por socorro pela rua a fora. Mas era tarde
demais.
A notícia explodiu como uma bomba na pacatez da cidadezinha e
ganhou todos os recantos. Pessoas cercaram a casa, curiosas e incrédulas. Os
mais estranhos comentários dominaram as conversas por longo tempo e os
incidentes do passado de Neco voltaram detalhados, esmiuçados e exagerados,
inclusive alguns que se encontravam esquecidos. Mesmo sem julgamento, ele
foi condenado, e aquele Natal permaneceu indelével na memória local.
Preso e condenado, Neco tudo recebeu com indiferença, como se não lhe
dissesse respeito. Parecia desligado da realidade e cumpriu a pena sem
reclamações. Expiava conformado a própria culpa. Deixando a prisão,
mostrava-se triste e envelhecido. Em silêncio, liquidou os negócios e
desapareceu.
Soube-se mais tarde que fixara residência numa fazendola
das proximidades de outra cidade. E, para surpresa geral, casou-se com uma
japonesa, cedendo talvez à curiosidade de verificar pessoalmente se as
orientais são mesmo diferentes. Tratava-se de uma dúvida que o acicatava de
longos anos.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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