Enéas Athanázio
OS ÚLTIMOS ANOS
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Entre as muitas biografias
parciais de Ernest Hemingway (1899/1961), nenhuma me parece tão tocante e
sincera como “Papá Hemingway”, de A. E. Hotchner (Civilização Brasileira –
Rio – 1967). Ela reconstitui os últimos quatorze anos de vida do escritor,
desde que o autor o conheceu em Cuba, no célebre bar Floridita, e se tornou
seu maior e mais íntimo amigo nessa última fase da existência, acompanhando
passo a passo a doença que o levaria ao trágico fim. Como ele próprio
afirma, depois de muito ponderar, resolveu “contar toda a verdade, sem
ocular nada; contar ao leitor como a coisa realmente aconteceu.” Encarregado
por uma grande revista americana de entrevistar Hemingway sobre o tema “O
futuro da literatura”, Hotchner embarcou para Havana, em cujas proximidades
o escritor vivia, na conhecida Finca Vigia, para tentar arrancar dele
algumas declarações a respeito de assunto tão vago quanto imprevisível. Sem
coragem de bater em sua porta, o repórter enviou ao escritor um bilhete onde
dizia que seu fracasso lhe custaria o emprego. Foi então que Hemingway
marcou um encontro no bar e ali se conheceram, dando início a uma sólida
amizade, realizando juntos numerosas viagens, caçadas, pescarias, temporadas
para acompanhar touradas e longas conversas reveladoras do pensamento do
escritor e sua inigualável técnica de escrever. Enquanto isso, Hotchner
adaptava para a televisão contos de Hemingway com grande sucesso.
Têm
início então as mais incansáveis viagens, tanto pelos Estados Unidos como
pela Europa. O carro constituía o transporte predileto do escritor, sentado
sempre ao lado do motorista, seu trono particular. Dali – dizia ele – podia
contemplar a paisagem, as cidades e as vilas, as pessoas e os animais, os
pássaros e a vegetação. Observador atento, tudo retinha na memória e sempre
que desejava recordar de algo dizia: “Aperto apenas o botão das lembranças e
lá surge a coisa. Se não estiver lá é porque não valia a pena ser
conservada.” E durante as viagens conversava muito, tanto sobre o que
acontecia no momento como a respeito de fatos passados, histórias e
leituras. Foi sempre um inigualável companheiro de viagens.
Quando na
Espanha, que considerava a segunda pátria, acompanhava com fervor as
touradas, assunto em que se tornou autoridade. Conhecia os toureiros,
discutia com eles e até protegeu alguns, e comparecia aos bares onde se
juntavam os aficionados. Em várias oportunidades acompanhou as caravanas dos
toureiros preferidos nas suas maratonas pelas cidades onde se apresentavam,
às vezes muito distantes umas das outras. Toureiros célebres foram seus
hóspedes na Finca Vigía, em Cuba. Em compensação, tornou-se conhecido dos
frequentadores das touradas e mais de uma vez foi aplaudido pela multidão.
Sua mulher foi contemplada com a orelha de um touro, grande homenagem de um
toureiro a alguma pessoa de destaque. Além de colecionar milhares de fotos
sobre touradas, escreveu livros, reportagens e artigos sobre o assunto.
A
vida seguia nesse ritmo ágil e vitorioso quando os problemas começaram a se
manifestar. Imperceptíveis no início, só notados pelas pessoas mais
chegadas, agravaram-se com rapidez. Tornou-se tristonho, preocupado com
ninharias, perdeu peso e parecia frágil. Instalaram-se as ideias fixas e a
mania de perseguição. Julgava-se vigiado pela polícia e pela receita
federal, imaginava que seus telefones estavam grampeados e enxergava um
espião em cada desconhecido. Irritadiço ao extremo, voltou-se até mesmo
contra a esposa Mary e o amigo Hotchner, autor do livro. Começa, então, a
terrível sequência de internações, a princípio simuladas para evitar
escândalos, e depois públicas e do domínio da imprensa. Seguiram-se os
tratamentos terríveis da época, com isolamento, eletrochoques, calmantes
violentos. Até que ele adotou uma postura dúplice: mostrava-se lúcido e são
perante os médicos, mas, tão logo libertado, retornavam todos os sintomas. E
foi numa dessas ocasiões, em 1961, que burlou a vigilância da mulher e o
tiro fatal ecoou no casarão de Ketchum, sua última morada. Tinha 62 anos e o
mundo perdia um dos maiores escritores do Século XX.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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