Enéas Athanázio
QUEM MATOU O BUGREIRO?
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A ação dos chamados bugreiros em nosso Estado tem provocado inúmeros
trabalhos, a grande maioria na área histórica. O assunto é um prato cheio
que poderia inspirar a ficção e a poesia, mas muito pouco tem sido
aproveitado. Fenômenos locais ou regionais de repercussão, a exemplo do
cangaço, dos jagunços, dos santos populares e outros têm dado margem a
romances, novelas, contos, crônicas, poemas, filmes e programas televisivos,
enquanto o genocídio dos bugres é pouco lembrado. Não me arrisco a pensar
que isso se deva à falta de imaginação ou a um secreto pudor ou vergonha de
expor o problema aos olhos do grande público. Nascido e criado dentro do
território do Contestado, percebi que a população da região nutria tais
sentimentos em relação ao movimento, considerando-o coisa de fanáticos e
ignorantes. Essa atitude, como se percebe, ocasionou a perda de incontáveis
fontes de informação sobre o Contestado. Haveria em relação aos bugreiros
algo semelhante?
Paulo Sá Brito, escritor radicado em Florianópolis e
veterano no gênero romanesco, enveredou por outro caminho e romanceou a saga
dos bugreiros em “Desde menino me choro”, publicado por Quorum Comunicação
(Florianópolis – 2019). Conhecedor do tema, leitor atento das obras de
outros autores que escreveram a respeito, deu asas à imaginação e criou um
romance vivo e absorvente sem, contudo, violar as balizas históricas. Criou
um autêntico romance indigenista sem pretensões panfletárias. O título,
excelente, é inspirado em verso de Fernando Pessoa.
Tudo tem início
quando uma tribo de índios xokleng é atacada pelo bando de Martinho Bugreiro
numa escura madrugada. O pequeno Cuitá dormia agarrado à mãe, ao lado dela,
a cabeça encaixada nos generosos seios maternos. Gritaria e tiros acordam as
pessoas que dormem e o pânico toma conta da aldeia. Sem resistir porque suas
armas foram destruídas, os guerreiros procuram fugir levando as mulheres e
crianças, enquanto outros procuram se esconder. Mas o ataque é implacável e
os índios vão tombando, atingidos pelas balas ou por certeiros golpes de
facões, inclusive a mãe do menino. Cuitá se refugia numa das cabanas mas é
encontrado e agarrado pelo próprio Martinho em pessoa. Findo o ataque,
chorando em desespero, gritando e esperneando, é levado para a cidade e
vendido a um casal de imigrantes alemães. É bem tratado pelo casal,
“civilizado” e educado, embora sofrendo pela ausência da mãe e das pessoas
de sua tribo. Não havendo alternativa, esforça-se para vencer no meio dos
brancos. Estuda, aprende e, superando os preconceitos e as dificuldades, se
torna professor em Curitiba. Cuitá se transformou em Gunther.
Assim
que entendeu o que acontecera, o menino se fixou na ideia da vingança.
Houvesse o que houvesse, ele haveria de matar Martinho Bugreiro. Os anos
passam e ele se mantém firme nesse propósito. Não haveriam de faltar
oportunidades.
Como pano de fundo, o romance descreve os massacres
praticados pelo célebre bugreiro, seu esquadrão da morte e outros que se
dedicavam à mesma atividade. Sua incrível habilidade em descobrir pistas na
mata virgem para localizar as aldeias, os despistes para não ser
pressentido, os ataques repentinos enquanto os índios dormiam, o pânico
provocado e a mortandade cruel de homens, mulheres e crianças a tiro e a
facão, cortando na carne mole onde o fio penetrava como em bananeira,
conforme afirmou um dos assassinos. Com extrema frieza, cortava as orelhas
das vítimas cujos pares constituíam os documentos para a prestação de contas
aos mandantes. Segundo diziam, era escrupuloso nesses acertos e sempre
sério. Nunca teria sido visto rindo. Já os “filhotes de bugres”, a exemplo
de Cuitá, eram levados para vender como serviçais a famílias da sociedade e
quanto mais longe, melhor.
Muitas outras informações curiosas e
algumas até surpreendentes vão surgindo no correr do romance. Entre estas
últimas, a revelação de que Martinho chegou a agir em Lages e Curitibanos,
fatos em geral desconhecidos. Os hábitos dos indígenas, a singularidade da
língua xokleng, o consumo de cupins, carrapatos e até piolhos como
alimentos, enquanto recusavam a ingestão de peixes, o desconhecimento da
existência de outros seres humanos fora de sua etnia e o nomadismo ancestral
vão formando um precioso painel a respeito desses gentios. Outros bugreiros,
anteriores e contemporâneos de Martinho também são relacionados com seus
nomes e regiões de atuação. A entrada em cena do indianista Eduardo Lima
e Silva Hoerhann, depois alcunhado de Katanghara, também enriquece a
narrativa. Às margens do rio Plate, curso d’água que entrou na história, ele
estabeleceu o primeiro contato dos brancos com os índios da tribo xokleng.
Precisou de tempo para conquistar a confiança deles e chegou a ser quase
escravizado. Ganhou a admiração dos gentios e estes lhe deram o nome de uma
madeira elástica a resistente como homenagem e prova de admiração. Eduardo
teria ameaçado Martinho de morte caso prosseguisse em suas matanças. Mais
tarde, acabrunhado e triste, Eduardo se afastou de tudo, manifestando
arrependimento do que havia feito em face do que acontecia com os índios.
Faleceu no ostracismo e está sepultado em Ibirama.
O romance de Paulo
Sá Brito é um manual de indigenismo sem propósito didatista. Alia o prazer
da boa ficção ao ensinamento e à informação. Indica novo rumo ao romance de
fundo histórico em nossa literatura.
Quanto a Cuitá, manteve ao longo
da vida o propósito de matar Martinho para vingar a sua tribo. Até que ele
de fato faleceu aos cinquenta e poucos anos, envelhecido e decadente. Mas
quem o matou não foi Cuitá, apesar do seu ardente desejo, mas o paratifo que
grassava na região.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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