Enéas Athanázio
REVELAR, NÃO ESCONDER
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Na época em que residi em Curitiba, na velha Pensão de Dona Rosa, a
quinhentos metros da Boca Maldita, meu colega de quarto possuía excelente
biblioteca que, aliás, era do pai dele, porque ele mesmo não lia nada.
Abusando dela, nos dias de chuva e frio, comuns na cidade, eu tomava
verdadeiras bebedeiras de leituras. Foi nessas ocasiões que li toda a obra
de Humberto de Campos, o notável Conselheiro XX, cujas Obras Completas, em
22 volumes, publicadas pela W. M. Jackson Inc, em 1941, integravam o acervo.
Não recordo como e nem porquê essa coleção veio às minhas mãos e comigo
permanece até hoje, enfrentando muitas andanças e mudanças, de casas e de
cidades. Em face disso, nunca estive afastado do notável escritor
maranhense, a cujos livros tenho retornado com frequência, sempre com o
mesmo prazer e admiração pela sua magnífica escrita. Agora mesmo, em
leituras intensivas, percorri os dois volumes de suas extraordinárias
“Memórias.” Terá esse tão longo contato me influenciado? Confesso que não
sei. Lembro que o saudoso Prof. Nereu Corrêa, nosso maior crítico, foi
leitor assíduo de Humberto de Campos e se aprestava para escrever um ensaio
a respeito de sua obra. Mas, infelizmente, não teve tempo.
Impressionam nesse escritor a elegância do estilo e a vastíssima erudição
numa pessoa que viveu tão pouco. Cada uma de suas páginas é uma exibição de
cultura e sabedoria. É também admirável a franqueza com que recorda o
passado, nada escondendo, nem mesmo os erros que, como todo mundo, um dia
cometeu. Como Jean-Jacques Rousseau, de quem foi aplicado leitor, sustentava
que as memórias são para revelar, nunca para esconder ou escamotear.
Muito pobre, órfão de pai em tenra infância, padeceu toda sorte de
privações, inclusive a fome aguda. Entregue aos cuidados de uma mãe lutadora
mas enérgica, que lhe aplicava violentas surras, viveu momentos
angustiantes, sem teto e sem pão. Numa viagem de navio, alegrava-se por não
enjoar e “almoçar e jantar três vezes ao dia.” Passou por diversas escolas,
sem grande proveito, e permaneceu por longo tempo na mais completa vadiagem,
tanto em Meritiba, a terra natal, como em Parnaíba, no Piauí, onde a família
viveu por muitos anos. Desde cedo, porém, nele se manifestou o gosto pela
literatura e o hábito de ler se consolidou para sempre. Lia e estudava tudo
que lhe caía nas mãos e assim amealhou vasto e variado conhecimento. Formado
em Direito, andou por São Luís e por Belém, até se fixar no Rio de Janeiro,
então capital do país, onde se consagrou como escritor e o cronista mais
lido e influente de seu tempo. Foi deputado federal pelo Maranhão e
ingressou ainda moço na Academia Brasileira de Letras.
Homem sofrido,
os padecimentos fizeram dele uma pessoa triste e pessimista. O sofrimento
deixou marcas indeléveis e elas transparecem com clareza em sua obra. Além
disso, era um menino feio, ou assim se considerava, como escreveu nesta
passagem: “Porque, se eu não nasci doente nem débil, sempre fui proclamado,
embora sem irritação, consciente da minha parte, o menino mais feio da
família. Nasci feio, e tenho sido, na vida, nesse ponto, de uma coerência
acima de todo elogio.” Percebe-se que aceitava a proclamada feiúra, sem
protesto ou revolta. Fazendo um balanço da vida, concluía que também não
fora bafejado pela sorte. Eis o que afirmou: “O pouco que me dão na vida, ou
é dado de má vontade, ou é podre.” Recordando o passageiro momento de
felicidade que lhe provocou um brinquedo, escreveu: “E que tem sido para
mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo roubado, que eu
escondo, que dissimulo assustadamente no coração, e que, no entanto,
descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele?” Numa
das passagens mais melancólicas de seus escritos, recorda ele o meio
miserável em que cresceu. “O que eu via em redor de mim, fora do quadro
escuro da nossa casa em que se lutava heroicamente pelo pão, era o tumulto
das misérias humanas, a glorificação dos atos criminosos, e uma pequena
humanidade arrastada, pela pobreza ou pela mediocridade do ambiente, para a
sarjeta da vida e do mundo.”
Em “Fim de Século”, uma das páginas mais
sentidas que escreveu, recorda a passagem do Século XIX para o Século XX.
Alertado pelas leituras, o garoto de treze anos, imaginava o que traria o
novo século, as conquistas, os espantos, os prodígios, as surpresas e as
esperanças que enchiam o coração da humanidade. Ele imaginava o que ia lá
fora, ouvia o foguetório, os gritos alegres, a música que enchia as ruas com
seus sons repletos de alegria, as fábricas e os navios apitando com
estridência. Mas ele, no interior obscuro e lúgubre da mercearia onde era
caixeiro, ajudava o chefe no balanço do estoque, contando garrafas de
bebidas e cantando em voz alta:
- Trinta e seis de Macieira!
-
Vinte e duas de Colares!
- Trinta e seis de conhaque!
“A
Civilização vira uma página lida – depõe ele – sem saber que emoções lhe
reserva a outra, que vai ler... De pé na escada, tudo isso me passa pelo
pensamento.” Mas sem um protesto ou um movimento de má vontade, continua a
trabalhar. A humanidade entra numa nova era; o garoto, porém, tem que
garantir o pão de amanhã.
Na crônica “Os Vareiros”, talvez sua
página mais célebre, descreve a lida dos homens que impelem rio-acima as
chatas pelo rio Parnaíba. Fixam a longa vara no fundo do rio, ajeitam a
outra ponta no peito calejado e caminham pela borda, empurrando a pesada
embarcação contra a corrente. Os atos são repetidos e continuados, dezenas,
centenas, milhares de vezes e, uma vez chegados ao destino, tudo recomeça,
agora em sentido contrário. E ele, então, velho, doente e quase cego, se
compara aos vareiros: agarrado à máquina de escrever, como eles ao varão,
escreve e escreve porque na escrita está seu ganha-pão e sua razão de viver.
Escrever, diz ele, é sua glória e seu infortúnio, como também afirmava
Rousseau.
Não obstante, foi muito criticado por escritores impiedosos
e talvez ressentidos. Diziam que sua literatura era nociva e conformista, o
que prejudicaria a juventude. Num desabafo contra um desses ataques,
desferido por um jovem jornalista, lembrou que João Diogo, chegando ao céu,
passou a descrever catastrófica enchente do rio São Francisco, causadora de
mortes e tragédias. Muitos se espantaram, exceto um velhinho de longas
barbas brancas, que não revelou qualquer surpresa. Findo o relato, João
Diogo indagou: quem é o cidadão indiferente? E o informante: ele é Noé!
Diante da crítica do jovem, concluiu o escritor, ele antepunha sua
experiência de vida às restrições do jornalista:
- Nesse terreno, eu
sou Noé! – proclamou.
Numa das passagens mais brilhantes, irônicas e
divertidas de sua obra, lança um “Manifesto à Nação.” Segundo ele, estava
imitando todos os políticos que afirmavam que o país afundava quando, na
verdade, eles próprios é que submergiam. Nessa página saborosa ele como que
traça um roteiro para o que lhe resta de vida:
- Não voltar mais à
política militante; - Não receber originais de livros para ler; - Não
escrever sobre livro cujo autor lhe peça; - Votará na Academia contra
todo candidato que peça manifestação anterior sobre seu voto; - Não
escrever mais prefácios; - Não aceitar convite para banquetes; - Não
servirá de “pistolão” junto a autoridades; - Nos contratos de edição
exigirá a numeração dos exemplares, não porque duvide dos editores, mas
porque eles estão ricos e os escritores continuam pobres; - Não emprestar
livros de sua biblioteca porque eles são como o corvo que Noé soltou da
arca; voam e não voltam; - “Sorrirás diante de todas as cousas graves da
vida. O sorriso transforma a ignorância em sabedoria.”
Ignoro se ele
cumpriu até o fim suas próprias regras.
Mas vale a pena ler e reler a
obra desse escritor tão brilhante quanto esquecido, cujas palavras
enternecem e ensinam.
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e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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