Enéas Athanázio
A DEGOLA
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“...mas é bicho mau, o homem!” (Simões Lopes
Neto)
Nos meus tempos de advogado em São Simão, assuntos da profissão me levaram
até um frigorífico instalado em distante cidade de nosso interior.
Estabelecimento pequeno, ainda usava métodos rudimentares, mas gozava de
renome na região e tinha considerável produção.
O gerente me
aguardava no portão e caminhei com ele por uma calçadinha lateral que levava
aos fundos do prédio pintado de um vermelho fosco. Numa espécie de telheiro
tinha lugar o início do processo de produção e enquanto conversava com o
homem sobre as razões de minha visita fui observando o que lá havia.
Suspenso do teto havia um largo anel de metal brilhante que me pareceu de
aço. Dele pendiam cerca de vinte dispositivos que semelhavam grandes funis
com os tubos ou bicos voltados para o chão. Em cada um deles estava sendo
colocado um frango vivo, ainda novo, com as cristas nascentes muito
vermelhas. As pernas ficavam voltadas para cima e os pescoços e cabeças
surgiam por baixo, através dos bicos dos funis, de forma que os corpos
ficavam entalados e sem movimento. Os pescoços e cabeças pendentes,
movendo-se em todas as direções, constituíam um espetáculo estranho. O
conjunto lembrava um carrossel com as figuras vivas e voltadas para baixo,
sem luzes e sem música. Ficava a impressão de que as pobres aves buscavam
uma explicação para tão insólita postura.
Acionada uma chave, o anel
metálico começava a rodar em razoável velocidade. Surgia, então, uma espécie
de navalha de lâmina larga e afiadíssima que ia decepando aqueles pescoços,
um a um, com extrema rapidez e eficiência. A surpresa impedia qualquer pio,
quando muito algum grugulejo sanguinolento. Com o impacto, os pescoços
decepados saltavam para um piso ladrilhado de branco, muitos deles ainda se
contorcendo nos estertores da morte. As cabecinhas saltitantes, com suas
cristas vermelhas e olhos esbugalhados ainda pareciam vivas, indagando
perplexas o que havia acontecido e sem perceber que estavam
irremediavelmente mortas.
Munido de uma espécie de rodo, um garoto
empurrava com absoluta frieza aqueles restos fúnebres para uma valetinha
cuja água corrente os conduzia a um imenso tacho. Nele, com outros
ingredientes, se transformariam em grosseiro sabão de barras.
Enquanto isso, o círculo metálico fazia uma parada, esperando que o sangue
das aves sem cabeça vertesse para o solo e dali, através de um cano,
escorresse para outro local onde, com certeza, seria aproveitado. Depois
voltava à posição anterior. Mãos ágeis e experientes retiravam dali os
cadáveres ainda quentes e talvez pulsantes e os levavam para um
compartimento vizinho. Apanhados num cercadinho próximo, outros frangos
vivos tomavam o lugar dos mortos e os pescoços não tardavam a surgir por
baixo dos grotescos funis. E então tudo recomeçava.
Não consegui
acompanhar a segunda rodada. Com uma bola no estômago, os olhos turvos,
afastei-me pela calçadinha lateral. Todo o sangue deve ter fugido de minhas
faces porque tanto o gerente como os funcionários me fitavam com olhares
irônicos. Chegando ao portão, contemplei os morros verdejantes que cercavam
a cidade e mirei o céu azul sem nuvem. Respirei fundo e embarquei no carro,
deixando inconcluso o assunto a ser tratado.
Durante largo tempo não
consegui ingerir carne de frango ou de qualquer ave.
Aquelas
cabecinhas saltitantes, com seus olhos perplexos, ainda hoje me assombram.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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