Enéas Athanázio
AGRURAS DO MEIÓTA
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Embora retinto e lustroso, ninguém se arriscava a chamá-lo de negro. Com
muito boa vontade, estando no seu dinheiro, ele tolerava que o tratassem de
moreno, eufemismo em geral usado. Naqueles tempos o conceito de negritude
era difuso e a palavra já por si carregava enorme carga de preconceito.
Tanto que o Meióta não aceitava preto ou negro e respondia em cima da tampa:
“Isso é sua mãe!” Exigia que o chamassem de cidadão e tinha lá suas boas
razões, encravadas nos dias já afastados do passado. E no entanto, nunca se
livrou do apelido, por mais que protestasse.
Quando o conheci, ele
residia num rancho para os lados da “saída” e vivia dias difíceis. Em nossos
encontros sempre nos tratamos com cordialidade, mesmo quando ele, bem alto
na pinga, andava em zigue-zague pela rua poeirenta. Numa dessas ocasiões,
ele afirmou, com a língua travada e a voz pastosa: “Eu já fui coisa nesta
vida, menino! Não fosse o maldito vício, hoje eu seria o seu Pereira,
enfiado no meu uniforme, e todos me respeitariam.” Não tive razão para
duvidar, mesmo porque ele tinha modos de gente educada e eu, ainda garoto, o
conhecia de pouco. Mas a partir dali tomei interesse e comecei a indagar a
respeito daquele homem solitário e sofrido.
Contava-se na Vila que
Meióta, cujo nome caiu no esquecimento, fora, de fato, coisa. Entrando muito
cedo no serviço da ferrovia, aos trinta e poucos era chefe-de-trens
cargueiros e, pouco depois, de passageiros, quase no topo da carreira que
terminava na função de inspetor. E lá ia ele, o seu Pereira, para o norte e
para o sul, envergando seu vistoso uniforme azul com botões e punhos
dourados, coberto pelo quepe alusivo à condição de chefe supremo a bordo da
composição. Em passo firme e decidido, percorria os vagões, gritando o nome
da próxima estação, e recolhendo os tíquetes das passagens. Respeitado por
todos, tinha fama de honesto, não aceitando propinas e nem permitindo
clandestinos. No seu trem ninguém viajava sem passagem e os passageiros
tinham que manter o bom comportamento. Nada de gritarias, arruaças,
bebedeiras ou agarramentos de casais.
Mas – e aí entra o velho
mas! –
o vício é a perdição do homem. Provando um gole aqui, outro acolá, nas frias
e solitárias travessias do vale tortuoso por onde o trem corria todos os
dias, virou um escravo da pinga, transformando-se naquilo que os médicos
definem gravemente por dependente. Quando começou a se sentir notado pelos
subordinados, maquinistas, foguistas, guarda-freios e jornaleiros, tratou de
esconder o vício numa pequena garrafa que levava no bolso, - uma meióta, -
de onde lhe veio o tenebroso apelido. E assim, em pouco tempo, perdeu o
emprego, perdeu o respeito dos outros, perdeu até o próprio nome,
substituído pela alcunha infamante. Foi morar naquela Vila esquecida,
biscateando, fugindo das chuvas e friagens num rancho mambembe, feio e
esburacado.
Tinha lá alguns amigos, entre eles um tal Natão,
desocupado e desordeiro que passava os dias na plataforma da estação, numa
roda de vadios, proseando prosas à-toa e dando risadas que ecoavam ao longe.
Quando não bebia, Natão era o melhor dos amigos; bêbado, ficava
insuportável. Nesse estado, por mal da sorte, acometia-o uma idéia malvada e
sem razão: queria a todo custo incendiar o rancho do Meióta e mais de uma
vez foi impedido a muque de realizar o propósito incendiário. Pertencente à
família dos mandões da Vila, nada lhe acontecia, e por isso o pobre Meióta
vivia em permanente e desesperada vigília. Cada vez que avistava o Natão no
rumo de seu rancho ou lhe diziam que ele andava por aquelas bandas,
desabalava na defesa de seu último reduto. Não foram poucas as vezes em que
acordou, alta madrugada, com o Natão rondando sua mísera morada, munido de
petrechos inflamáveis. Durante anos essa corrida se repetiu.
Os
tempos voaram, afastei-me da Vila e não tive notícia do desfecho de tão
estranho furor incendiário. Meióta “passou para o outro lado do mistério”,
como dizia mestre Machado de Assis, e Natão está sumido em vida, conforme o
dito mineiro. Creio que o rancho não foi consumido pelas chamas, mas os
protagonistas da história, com certeza, se consumiram no fogo da pinga.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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