Enéas Athanázio
O HAGIÓGRAFO SEM FÉ
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Hagiografia, definem os dicionários, é a arte de escrever a vida dos
santos. São em geral as pessoas religiosas e de profunda fé que se entregam
à reconstituição das vidas daqueles que foram santificados e elevados aos
altares. No caso do escritor franco-suiço Blaise Cendrars (1887/1961), no
entanto, as coisas foram bem diferentes. Com um dos filhos engajado nos
combates da I Guerra Mundial (1914/1918), como piloto de caça, Cendrars
prometera a ele encontrar um santo que pudesse ser eleito o novo patrono da
aviação e tratou de se entregar à pesquisa. O filho, vítima de um ataque
aéreo, não chegou a tomar conhecimento da escolha do pai, mas Cendrars, em
compensação, foi tomado de viva admiração por São José de Cupertino, cuja
existência rebuscou em todas as fontes ao seu alcance. Giuseppe Desa, mais
conhecido como São José de Cupertino (1603/1663), teve um lugar destacado na
história da Igreja e, em especial, da levitação. Segundo as informações do
escritor, ele não apenas levitava com grande facilidade como foi o único
levita de que se tem notícia capaz de levitar em marcha a ré! Seus voos eram
tão frequentes que chegavam a perturbar a paz do convento, razão pela qual
os demais padres costumavam excluí-lo das atividades públicas. E o mais
curioso é que foi considerado homem de inteligência limitada, ingênuo e um
tanto simplório, concluindo-se que a santidade não depende de elevados dotes
mentais. Segundo Cendrars, ninguém mais indicado que o levita para ser o
novo patrono da aviação. Influenciado pela sua história, o escritor realizou
um levantamento completo de todos os levitas reconhecidos, século a século,
ocupando grande parte de seu livro “O Loteamento do Céu”, publicado entre
nós pela Cia. das Letras (2009). Para concluir o rol de curiosidades,
anote-se que Blaise Cendrars se declarava um homem sem fé, um ateu confesso,
que se transformou no minucioso hagiógrafo de um santo humilde e pouco
conhecido dos crentes em geral.
“O Loteamento do Céu” é um dos
chamados “livros brasileiros” de Cendrars, uma vez que numerosas páginas são
dedicadas ao nosso país, pelo qual o escritor tinha imensa admiração e onde
esteve pelo menos três vezes. Tudo que diz respeito ao Brasil é registrado
em termos superlativos e exagerados que o tradutor e o coordenador se
apressam a corrigir em frequentes notas de rodapé. Embora considerado um
volume de memórias, a realidade e a fantasia se misturam de tal forma que em
muitas passagens é impossível separá-las.
Capítulo dos mais
interessantes é “A torre Eiffel sideral”, onde ele relata sua permanência,
em parte imaginária e sempre exagerada, na Fazenda Morro Azul, no interior
paulista. Dirigindo um Alfa Romeo cor de vinho, que na verdade nunca esteve
no Brasil, e tomando por uma estrada errada, saltando sobre pedras e
buracos, vai ter, afinal, na monumental sede da fazenda cafeeira, esta sim
autêntica. Lá é recebido pelo proprietário, homem estranho, solitário e
gentil, apaixonado por Sarah Bernhardt, para quem escreve cartas e poemas
que vai empilhando sem jamais chegarem ao conhecimento dela. Além disso, nas
suas observações de astrônomo amador, perscrutando o céu límpido em noites
salpicadas de estrelas, está convencido de que havia descoberto uma nova
constelação, “roubando” astros de outras, com o perfeito formato da torre
parisiense – a torre Eiffel sideral. Ainda que jamais reconhecida a
admirável descoberta, pela qual Cendrars e ele próprio teriam movido fundos
e mundos, o assunto ocupa as atenções do escritor ao longo de numerosas
páginas. Nessas longas noites de silêncio e paz, as lembranças do anfitrião
e do hóspede vagam pelos mais estranhos caminhos. Enquanto aquele recorda o
beijo imaginário que teria recebido de Sarah Bernhardt, ocasião em que ela
lhe dera um pedaço da renda de sua roupa (depois emoldurada no gabinete de
trabalho), o hóspede relembra o que teria escrito em Kyoto, onde nunca
estivera, confunde o número de degraus da entrada de seu aposento, mistura
paulistas com gaúchos pilchados e se equivoca na biografia do próprio pai,
além de divisar serpentes inexistentes e desvendar mistérios insondáveis.
Como ele próprio dizia, “escrever é descer como um mineiro ao fundo da mina,
com uma lâmpada de grade na testa, pavio de duvidosa luminosidade e que tudo
deforma...” (pág. 325). Não foi por mero acaso que este livro deixou
perplexa a crítica francesa! Mas é uma leitura inesquecível que nos conduz
pelo mundo sem limites da imaginação criadora.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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