Enéas Athanázio
A INFÂNCIA DE LOBATO
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Para assinalar os setenta anos do falecimento de Monteiro Lobato
(1882/1948), o Prof. Osni Lourenço Cruz publicou um livro que é um marco na
bibliografia sobre o criador do Sítio do Picapau Amarelo. Em tamanho grande
e com 360 páginas. “Na trilha de Lobato – A inquieta juventude” (Edição do
Autor – Taubaté/SP) é um imenso repertório das primeiras fases da vida do
escritor, iniciando-se no nascimento e acompanhando passo a passo até sua
formatura pela Faculdade de Direito de São Paulo. Para mais enriquecer o
trabalho, o pesquisador realiza o levantamento da árvore genealógica de
Lobato, recorda alguns eventos envolvendo José Francisco Monteiro, o
Visconde de Tremembé, avô materno do escritor, faz uma curiosa confrontação
entre os fatos e as lendas que cercam Lobato e comenta incorreções da obra
de Edgard Cavalheiro, o mais categorizado biógrafo lobatiano. O livro é de
imensa riqueza iconográfica, estampando grande número de fotos, gravuras,
caricaturas, cartas e documentos como jamais encontrei, mesmo sendo assíduo
leitor de/e sobre Lobato. Muitas dessas ilustrações aparecem pela primeira
vez em livro, o que me leva a imaginar a extensão da pesquisa feita pelo
autor em publicações antigas, jornais velhos, arquivos públicos e
particulares, diários e anotações pessoais, cartórios e repartições.
Em seguida o autor esmiúça a infância de Lobato, fase por fase, sempre com
sólidas bases documentais. Esclarece que não nasceu na Chácara do Visconde,
como tantas vezes tem sido afirmado, e que nunca se chamou Renato. Descreve
as relações do menino com a mãe, afetivas e carinhosas, e com o pai, formais
e um pouco distantes. São evocadas as aventuras, correndo livre pela fazenda
e pela chácara, as caçadas na companhia paterna, as brincadeiras com as
irmãs, a biblioteca do avô, onde se enfurnava por horas e horas, a vergonha
ao aparecer em público com as primeiras calças compridas. A vida estudantil,
nos vários colégios que frequentou, e momentos marcantes, como o primeiro
livro que ganhou (“João Felpudo”), a visita do Imperador D. Pedro II,
hospedando-se na casa do avô, e que provocou a curiosidade do menino porque
um homem tão forte e barbado tinha uma voz tão fininha, fato de que jamais
esqueceria. Momentos tristes, como a perda da mãe, ainda jovem, e do pai,
deixando-o aos cuidados do avô. A iniciação nas letras e o florescer do
gosto literário. Por fim, a mudança para São Paulo, onde permaneceria até a
formatura em Direito.
Capítulo dos mais interessantes e que também
nunca vira relatado em minúcias foi o envolvimento de José Francisco
Monteiro, Visconde de Tremembé e avô de Lobato num episódio de inusitada
violência, inexplicável numa figura de tal realce e importância na cidade e
na região. A cabra e dois filhotes pertencentes a um mecânico alemão de nome
Augusto Kreye escapam de seu gradil, penetram no jardim do Visconde e causam
algum dano. Numa atitude inacreditável, ele mutila a cabra, corta-lhe as
orelhas e a cauda e provoca outras lesões no animal. Indignado, e com razão,
o mecânico vai falar com o Visconde, ocasião em que este saca de um revólver
e desfere um tiro contra o reclamante. O projétil fura-lhe o chapéu e atinge
de raspão a cabeça, causando um ferimento e copiosa hemorragia. Tudo
indicava que a intenção do atirador era acertar a cabeça do mecânico.
Segundo testemunhas, de revólver em punho, o Visconde indaga da vítima se
ainda queria mais. Instaurado inquérito policial, o indiciado empenhou-se de
todas as formas em procrastinar o seu trâmite, não atendendo às notificações
e nunca comparecendo aos atos processuais. Para completar, foi denunciado
por lesão corporal leve quando os fatos indicavam uma evidente tentativa de
homicídio. No decorrer do processo, tal como antes, o Visconde usou de todas
as chicanas imagináveis para tumultuar o andamento do feito. Durante o
julgamento pelo Tribunal do Júri, conforme o sistema processual da época,
recusou-se a sentar e permaneceu em pé até a decisão final. E se isso tudo
não fosse suficiente, foi absolvido por unanimidade!
Mas a arrogância
do poderoso membro da nobreza rural não ficou satisfeita e o Visconde não
titubeou em usar de suas influências para infernizar a vida do mecânico.
Relata o autor do livro, com base em suas pesquisas, que o Visconde usou de
todos os estratagemas para prejudicar o infeliz proprietário da desastrada
cabra, provocando até mesmo sua demissão do emprego de guarda noturno da
estação da estrada de ferro. É um bom exemplo do comportamento dos “nobres”
daquela época.
Recorda o autor o surgimento da literatura infantil de
Lobato conforme a versão do próprio escritor. Segundo ele, quando se
encontrava em seu escritório, à Rua Bela Vista, o romancista Toledo Malta
relatou a história de um peixinho que ficou muito tempo fora d’água e quando
retornou morreu afogado porque havia esquecido de nadar. A historinha ficou
bailando na cabeça do escritor até que ele a escreveu. O sucesso foi enorme
e despertou nele o desejo de escrever para crianças. E assim, “um grão de
pólen me caiu um dia em algum óvulo cerebral e gerou o primeiro “A menina do
narizinho arrebitado.” O começo foi esse...” Ali nascia o mundo encantado do
Sítio do Picapau Amarelo e ao mesmo tempo a literatura infantil brasileira.
Está de parabéns o Prof. Osni Lourenço Cruz pela excelente contribuição
para o conhecimento de Lobato e sua obra, fonte de consulta indispensável
daqui em diante aos estudiosos de nossa literatura.
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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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