16/12/2018
Ano 22 - Número 1.105

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


A INFÂNCIA DE LOBATO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal


Para assinalar os setenta anos do falecimento de Monteiro Lobato (1882/1948), o Prof. Osni Lourenço Cruz publicou um livro que é um marco na bibliografia sobre o criador do Sítio do Picapau Amarelo. Em tamanho grande e com 360 páginas. “Na trilha de Lobato – A inquieta juventude” (Edição do Autor – Taubaté/SP) é um imenso repertório das primeiras fases da vida do escritor, iniciando-se no nascimento e acompanhando passo a passo até sua formatura pela Faculdade de Direito de São Paulo. Para mais enriquecer o trabalho, o pesquisador realiza o levantamento da árvore genealógica de Lobato, recorda alguns eventos envolvendo José Francisco Monteiro, o Visconde de Tremembé, avô materno do escritor, faz uma curiosa confrontação entre os fatos e as lendas que cercam Lobato e comenta incorreções da obra de Edgard Cavalheiro, o mais categorizado biógrafo lobatiano. O livro é de imensa riqueza iconográfica, estampando grande número de fotos, gravuras, caricaturas, cartas e documentos como jamais encontrei, mesmo sendo assíduo leitor de/e sobre Lobato. Muitas dessas ilustrações aparecem pela primeira vez em livro, o que me leva a imaginar a extensão da pesquisa feita pelo autor em publicações antigas, jornais velhos, arquivos públicos e particulares, diários e anotações pessoais, cartórios e repartições.

Em seguida o autor esmiúça a infância de Lobato, fase por fase, sempre com sólidas bases documentais. Esclarece que não nasceu na Chácara do Visconde, como tantas vezes tem sido afirmado, e que nunca se chamou Renato. Descreve as relações do menino com a mãe, afetivas e carinhosas, e com o pai, formais e um pouco distantes. São evocadas as aventuras, correndo livre pela fazenda e pela chácara, as caçadas na companhia paterna, as brincadeiras com as irmãs, a biblioteca do avô, onde se enfurnava por horas e horas, a vergonha ao aparecer em público com as primeiras calças compridas. A vida estudantil, nos vários colégios que frequentou, e momentos marcantes, como o primeiro livro que ganhou (“João Felpudo”), a visita do Imperador D. Pedro II, hospedando-se na casa do avô, e que provocou a curiosidade do menino porque um homem tão forte e barbado tinha uma voz tão fininha, fato de que jamais esqueceria. Momentos tristes, como a perda da mãe, ainda jovem, e do pai, deixando-o aos cuidados do avô. A iniciação nas letras e o florescer do gosto literário. Por fim, a mudança para São Paulo, onde permaneceria até a formatura em Direito.

Capítulo dos mais interessantes e que também nunca vira relatado em minúcias foi o envolvimento de José Francisco Monteiro, Visconde de Tremembé e avô de Lobato num episódio de inusitada violência, inexplicável numa figura de tal realce e importância na cidade e na região. A cabra e dois filhotes pertencentes a um mecânico alemão de nome Augusto Kreye escapam de seu gradil, penetram no jardim do Visconde e causam algum dano. Numa atitude inacreditável, ele mutila a cabra, corta-lhe as orelhas e a cauda e provoca outras lesões no animal. Indignado, e com razão, o mecânico vai falar com o Visconde, ocasião em que este saca de um revólver e desfere um tiro contra o reclamante. O projétil fura-lhe o chapéu e atinge de raspão a cabeça, causando um ferimento e copiosa hemorragia. Tudo indicava que a intenção do atirador era acertar a cabeça do mecânico. Segundo testemunhas, de revólver em punho, o Visconde indaga da vítima se ainda queria mais. Instaurado inquérito policial, o indiciado empenhou-se de todas as formas em procrastinar o seu trâmite, não atendendo às notificações e nunca comparecendo aos atos processuais. Para completar, foi denunciado por lesão corporal leve quando os fatos indicavam uma evidente tentativa de homicídio. No decorrer do processo, tal como antes, o Visconde usou de todas as chicanas imagináveis para tumultuar o andamento do feito. Durante o julgamento pelo Tribunal do Júri, conforme o sistema processual da época, recusou-se a sentar e permaneceu em pé até a decisão final. E se isso tudo não fosse suficiente, foi absolvido por unanimidade!

Mas a arrogância do poderoso membro da nobreza rural não ficou satisfeita e o Visconde não titubeou em usar de suas influências para infernizar a vida do mecânico. Relata o autor do livro, com base em suas pesquisas, que o Visconde usou de todos os estratagemas para prejudicar o infeliz proprietário da desastrada cabra, provocando até mesmo sua demissão do emprego de guarda noturno da estação da estrada de ferro. É um bom exemplo do comportamento dos “nobres” daquela época.

Recorda o autor o surgimento da literatura infantil de Lobato conforme a versão do próprio escritor. Segundo ele, quando se encontrava em seu escritório, à Rua Bela Vista, o romancista Toledo Malta relatou a história de um peixinho que ficou muito tempo fora d’água e quando retornou morreu afogado porque havia esquecido de nadar. A historinha ficou bailando na cabeça do escritor até que ele a escreveu. O sucesso foi enorme e despertou nele o desejo de escrever para crianças. E assim, “um grão de pólen me caiu um dia em algum óvulo cerebral e gerou o primeiro “A menina do narizinho arrebitado.” O começo foi esse...” Ali nascia o mundo encantado do Sítio do Picapau Amarelo e ao mesmo tempo a literatura infantil brasileira.

Está de parabéns o Prof. Osni Lourenço Cruz pela excelente contribuição para o conhecimento de Lobato e sua obra, fonte de consulta indispensável daqui em diante aos estudiosos de nossa literatura.


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Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email e.atha@terra.com.br

 



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC




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