Enéas Athanázio
REPÓRTER DO COTIDIANO
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“Amo o assunto indígena!” (Olga Savary)
Disse alguém que o cronista é uma espécie de repórter do cotidiano. Isso
porque ele tem que estar sempre atento, com as antenas ligadas, para captar
o que acontece ao seu redor, muitas vezes fatos mínimos, para transformá-los
em belas páginas literárias. Grandes cronistas têm se valido de
acontecimentos que outras pessoas nem sequer percebem para produzirem
maravilhosas crônicas. Lembro-me, por exemplo, de que Rubem Braga fez do voo
de pequena borboleta amarela uma de suas melhores páginas, sempre
selecionada entre as mais perfeitas produções do gênero entre nós. Fernando
Sabino, notável cronista, denominava sua coluna de aventura do cotidiano,
mostrando que fatos inexpressivos na aparência poderiam ser travestidos em
excelentes crônicas.
Gênero leve e breve, integrante do chamado
jornalismo cultural, o local mais adequado para a crônica é a página do
jornal ou da revista. Reunida em livro ela perde muito de seu viço e de seu
frescor, exceto quando se trata de uma coletânea de excepcional qualidade
literária, como tem acontecido com obras que contenham trabalhos de
cronistas de grande talento para o gênero. Aliás, a literatura brasileira
tem contado com excelentes cronistas, desde os mais antigos, como Machado de
Assis e Humberto de Campos, até os mais modernos, como o referido Rubem
Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Henrique Pongetti, Carlos
Drummond de Andrade e mais alguns, que se tornaram conhecidos do grande
público e conquistaram lugar de destaque na história literária.
Muitos outros cronistas também se destacaram no gênero, ainda que não
conquistassem tal renome porque escreveram fora do chamado eixo Rio-São
Paulo. Foi o caso, por exemplo, do catarinense Jair Francisco Hamms,
primoroso cronista, autor de excelentes páginas, permeadas de criatividade e
humor. Seu livro “O vendedor de maravilhas” é uma leitura que encanta
sempre. Outro caso bem típico foi o de Luís da Câmara Cascudo, que se dizia
um provinciano incurável e que sempre se recusou a deixar Natal, sua cidade.
Embora considerado o maior folclorista brasileiro e com reputação
internacional, sua obra de cronista não encontrou a mesma ressonância porque
publicada em jornal local, mesmo que em nada perdesse para os textos de seus
colegas de ofício dos grandes centros.
Por tudo isso, muito bem fez o
escritor Franklin Jorge ao selecionar a reunir em belo livro as “Actas
Diurnas”, crônicas de Cascudo publicadas originalmente no jornal “A
República.” É um conjunto de textos escolhidos com critério, mostrando o
talento e a versatilidade do mestre potiguar para o apreciado gênero. Ali
estão bem visíveis a sua segurança no manejo das palavras, o senso arguto de
observação, o humor suave e bem dosado, o domínio do gênero, enfim. Nada lhe
escapa, desde os detalhes da cidade, os perfis de figuras anônimas ou de
destaque, acontecimentos maiores ou menores, a paisagem, o mar, as feiras e
tudo mais. Ressalta, no correr do texto, a admirável cultura do autor,
revelando minúcias, corrigindo equívocos, acrescentando informações. Seus
olhos se voltaram também para figuras interessantes que povoavam a cidade
como, de resto, todas as outras, sem que sejam notadas pelo comum dos
mortais. Assim, a morte de uma mulher conhecida como hamburguesa, a prisão
de um certo Lourival Açucena, as atividades do Zé da Banda, as
excentricidades de Urbano Hermilo, Chico Gordo e outros são imortalizados em
deliciosas crônicas. Sem falar em fatos do dia-a-dia da cidade, daqueles que
nem são mais notados porque se repetem: os sinos da matriz e os significados
de seus toques, o galo da torre da igreja, a chaminé da fábrica e sua
fumaça, tudo vira crônica nas mãos mágicas do escritor que vivia no casarão
da Avenida Junqueira Aires, hoje Avenida Câmara Cascudo, e que só recebia
visitas à tarde porque virava a noite com o nariz enterrado nos seus livros.
O livro devolve ao leitor o Câmara Cascudo com toda sua verve e sua cultura.
A leitura foi um agradável reencontro com ele e por isso vão meus aplausos a
Franklin Jorge pela justiceira iniciativa.
Tive o prazer de conhecer
Câmara Cascudo. Passei toda uma tarde na casa dele, em 1983, três anos antes
de seu falecimento, quando muito conversamos. Recebi dele, na ocasião, o
livro “Anúbis e outros ensaios”, que guardo até hoje com muito carinho.
Trocamos muitas cartas, ele escreveu sobre meus contos e costumava me
qualificar como o mais meridional de seus correspondentes. É uma figura que
faz falta e que deixou saudades.
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Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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