Enéas Athanázio
O SEGREDO DAS BIOGRAFIAS
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Tenho para mim que o biógrafo é um justiceiro porque ele se esconde por
detrás da figura do biografado, cuja personalidade tenta absorver em
detrimento da sua própria. Como escreveu alguém, é um esforço para não
deixar morrer os nossos mortos. Câmara Cascudo escreveu certa vez que a
tarefa do biógrafo é ressuscitadora porque torna o biografado uma “entidade
viva e comunicante nos caminhos de nosso Entendimento.” Gênero difícil,
exigindo intensa pesquisa, visão histórica e informação, o grande segredo da
biografia é mostrar o biografado vivo, em ação, agindo e reagindo, pulsando,
vivendo, enfim. E isso não é fácil, tanto que muitas biografias não o
conseguem, não passando de relatos frios das ações de outrem.
Fabio
de Sousa Coutinho se revela portador desses requisitos em seu livro “Lucia –
Uma biografia de Lucia Miguel Pereira”, publicado por Outubro Edições
(Brasília – 2017). Bem fundamentado, rico em elementos informativos,
minucioso, escrito com sinceridade afetiva, o livro reconstitui passo a
passo a existência e as realizações de uma das figuras femininas mais
importantes da literatura nacional. Ficcionista, biógrafa, crítica literária
e tradutora, a biografada chegou a ser considerada a Madame de Srael do
século XX. Em qualquer dos gêneros a que se dedicou, sua produção foi sempre
bem acolhida pela crítica e pelos leitores.
Trabalhadora incansável,
Lucia Miguel Pereira foi uma presença forte e constante no panorama cultural
brasileiro de seu tempo. Entre suas maiores realizações, avulta a
consagradora obra “Machado de Assis – Estudo crítico e biográfico”,
enaltecida como autêntica obra-prima e hoje com diversas edições, secundada
pela não menos valiosa “A vida de Gonçalves Dias”, recuperando a trajetória
do inditoso poeta dos Timbiras, falecido em trágico naufrágio quando já se
avistava a terra natal. Ambas se constituem em marcos do gênero biográfico
entre nós e conquistaram posição definitiva na estante nacional dedicada à
arte biográfica.
Além disso, Lucia Miguel Pereira produziu romances,
literatura infantil, ensaios, crítica literária em abundância, e organizou o
“Livro do centenário de Eça de Queirós”, o que lhe custou um ano de
incansável trabalho. Coordenou os serviços da biblioteca do MAM, do Rio de
Janeiro, e ainda encontrou tempo para traduzir Proust, tarefa que realizou
com extrema dedicação e exigência perfeccionista. Publicou ainda “Prosa de
Ficção – História da literatura brasileira”, livro pelo qual tenho antiga e
intensa predileção.
No terreno pessoal, Lucia foi uma mulher corajosa
e de atitude. Numa época em que isso constituía um verdadeiro tabu, passou a
viver com Octavio Tarquínio de Sousa, ministro do TCU e historiador,
desquitado da primeira esposa e com quem se casou no Uruguai, como era de
hábito nos tempos pré-divórcio. Com ele formou um casal unido e feliz,
convivendo “até que a morte não os separe” – como diz o Autor. É que ambos
pareceram juntos em acidente aéreo, quando retornavam de São Paulo, e seus
corpos foram identificados com as mãos dadas e dedos entrelaçados. “Felizes
os que chegam de mãos dadas, como se fosse o instante da partida”, escrevera
o poeta Lêdo Ivo, como quem profetizava o triste desenlace. Foi a tragédia
final de Lucia, já marcada por outras ao longo da existência.
Por
ocasião do retorno de Santos Dumont ao Brasil, entre as homenagens
planejadas, um grupo de intelectuais deveria sobrevoar o transatlântico
“Ancona”, em que viajava o herói. Lucia foi convidada a integrar a comitiva,
mas sua mãe vetou a presença dela, alegando que não ficaria bem uma moça
viajar em meio a tantos varões. Foi a sorte da jovem, ou o destino. Como
registrou a história, o avião despencou na Baía da Guanabara, matando todos
seus ocupantes. Em face da tragédia, Santos Dumont pediu que todas as
solenidades em sua honra fossem canceladas. Coincidência ou alerta do
destino?
O livro contém valioso material iconográfico e relaciona a
ampla bibliografia relacionada que foi objeto de detida consulta pelo Autor.
Conta ainda com excelente prefácio de autoria do poeta Anderson Braga Horta.
Está de parabéns Fábio de Sousa Coutinho por nos ter devolvido Lucia Miguel
Pereira, rediviva e ativa.
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e.atha@terra.com.br
(15 de fevereiro, 2018)
CooJornal nº 1.065
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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