Enéas Athanázio
DESPREZO PELA VIDA
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A França vivia sob o tacão nazista, ocupada pelo exército alemão,
durante a II Guerra Mundial. As prisões, torturas e fuzilamentos se tornaram
tenebrosa rotina. A vida de um francês nada valia e todos os esforços se
faziam necessários para sobreviver. Ocultar-se, omitir-se, evaporar-se eram
as melhores fórmulas para continuar vivo. Ou, em contrapartida, aliar-se ao
inimigo, ainda que correndo o risco de ser executado pela Resistência. Mesmo
assim, essa foi a opção de Lotte, mantendo em sua própria casa um bordel
para servir aos oficiais alemães.
Nesse ambiente deletério, misturado
às profissionais do sexo – Blanche, Minna, Anny e outras – vivia Frank,
filho da proprietária, mocetão bonito e dos seus 19 anos de idade. Alheio ao
que se passava a seu redor, o rapaz parecia ausente de tudo aquilo. Bem
vestido, envergando um legítimo “pelo de camelo”, trocava pernas pelas ruas
recobertas de neve e frequentava os bares do bairro, juntando-se à pior ralé
imaginável. Ali conheceu oficiais da ocupação, mulheres e muitos elementos
de vida e ocupações duvidosas. Interessado em obter uma arma, tarefa difícil
naqueles dias nebulosos, passou a desejar o revólver de um oficial gordo,
beberrão e depravado que aparecia no Bar do Timo. Não havendo outro meio,
não hesitou a matá-lo a facadas numa noite escura, nas proximidades do muro
de um curtume abandonado. Apossou-se da arma ambicionada, mas teve a má
sorte de ser visto por um vizinho do mesmo prédio, o motorneiro de bondes
Holst, pai de Sissy, de cujo silêncio se tornou refém.
O tempo passa,
o motorneiro não abre a boca, a filha dele se apaixona pelo rapaz que arma
contra ela a mais indecente das ciladas. Nesse meio, é informado de que
certo general, cujo nome nunca se pronunciava, colecionava relógios e pagava
fortunas por raridades. Lembra-se, então, do relojoeiro de sua vila natal e
resolve assaltá-lo. Reconhecido pela irmã dele, mata-a com o maior
sangue-frio. Entregue a encomenda, recebe a metade do butim, importância
muito alta, nada comum naqueles tempos de dinheiro curto. Passa a viver como
um nababo, exibindo dinheiro e poder. Não contava ele, porém, com o
imponderável: o dinheiro fora furtado pelo general e as notas estavam
marcadas. Foi a sua perdição.
Quando menos espera, é preso e
conduzido a uma escola improvisada em presídio. Não o torturam, preferem
vencê-lo no cansaço, submetendo-o a seguidos interrogatórios. Ele resiste.
Os dias se sucedem, os interrogatórios continuam e ele vai percebendo que
eles tudo sabiam. Para seu espanto, descobre que Anny, uma das pensionistas,
era agente da Resistência e emitia mensagens secretas. Como fazia isso
constituía um mistério, pois passava os momentos livres lendo revistas.
Recebe visitas da mãe e de Sissy. Aconselham-no a colaborar, mas ele
resiste, nega e se recusa a responder. Mas o desgaste físico e psicológico é
inevitável. Emagrece, vive sujo, barbudo, com os trajes amarrotados. Com
dezenove dias de prisão não lembra nem de longe o moço bonito que foi e a
vida lá fora parecia algo tão distante como uma miragem. Mas a técnica
aplicada acaba mostrando seus resultados e ele se entrega. Confessa tudo,
com datas, locais, horários. E depois se cala, sejam quais forem as
consequências.
Espancam-no, deixam-no nu no escritório, dão-lhe
joelhadas nas partes genitais, só lhe dão sopa aguada para tomar. Mas ele
nada diz, impenetrável no seu mutismo. Até que, numa madrugada fúnebre, o
conduzem através do pátio, pisando na neve suja, ao ponto das execuções.
Como vira tantos assim fazerem, levanta a gola do sobretudo e ruma
cabisbaixo para o trágico desenlace. Entra em longa fila indiana à margem da
galeria.
Esse, em breves pinceladas, o entrecho de “A Neve Estava
Suja” (Cia. das Letras – S. Paulo – 2014), de Georges Simenon (1903/1989),
com justa razão considerado um dos mais instigantes romances ambientados na
França ocupada.
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e.atha@terra.com.br
(15 de novembro, 2017)
CooJornal nº 1.053
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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