Enéas Athanázio
AVENTURA AO REDOR DE MEU QUARTO
|
|
Existe com esse título um poema que já foi famoso em que o poeta abordava
aventuras psicológicas e imaginárias entre as quatro paredes daquilo que os
antigos designavam por alcova (*). Mostrava que para os dotados de imaginação
nem as paredes cruas conseguem impor limites. Agora, quando ditas aventuras
são reais e vividas, não será tão fácil realizá-las em ambiente assim exíguo.
Transpostas as coisas para o ambiente da cidade, nem sempre aventuras
inovadoras são possíveis. Depois de muitos anos, tudo parece conhecido,
visitado, sabido, palmilhado. Num sentido figurado, a cidade acaba se tornando
nosso próprio quarto.
Essa, porém, não é uma regra. Sem sair dos limites
urbanos, minha mulher e eu realizamos uma bela aventura aqui mesmo, sem viajar
ou gastar, exceto o esforço físico, aliás bastante saudável. Vai o convite
para que os curiosos nos acompanhem em imaginação ou refaçam nossos passos.
Percorremos passo a passo a longa passarela que o município construiu sobre as
pedreiras situadas após a foz do Marambaia. É uma obra que se transformou em
atração turística, uma vez concluída e ajardinada. Vencidas todas as
curvinhas, penetramos pelo caminho que sobe o morro, o último, com mostras de
ser antigo e bastante usado. Enveredamos por ali, sob o mato, vencendo a
subida íngreme e o chão repleto de pedras e mais pedras. Não tardamos a
deparar com companheiros de jornada, entre eles um pescador simpático e
conversador, contador de “causos”, cuja satisfação maior era ser primo de um
construtor arquimilionário que havia edificado este, aquele e aqueloutro
prédio. Depois de muito suor, esforço e algumas escorregadelas, avistamos, lá
em baixo, a Praia do Buraco, imensa, vazia, bucólica, com muita areia fofa e
banhada pelo mar azul. Por ela seguimos, pés dentro d’água, sentindo a carícia
do velho Atlântico, muito calmo àquela hora.
Andamos, andamos. Às vezes,
solitário, algum praiano aproveitando, deitado ou vagando sem pressa,
ruminando secretos pensamentos. Transposto o hotel, cujos fundos vão ter ao
mar, chegamos até o penhasco do outro extremo. E ali, como que subindo ao céu,
a inacreditável escadaria de concreto que leva ao pico do morro. E então,
reunindo ânimo e coragem, iniciamos a escalada, degrau a degrau, dez, vinte,
cinquenta, uma paradinha para tomar fôlego, e mais dez, vinte, cinquenta, até
os duzentos do total (contados...). Esbofados, suados, arquejantes,
entreparamos e olhamos para o mar. Inacreditável a vista que se descortina,
compensadora de tanto esforço. Mar largo, azul e calmo, separando-nos da velha
África, o misterioso continente negro das aventuras lidas na infância, a
África do Sul com suas pradarias povoadas de bichos e a Namíbia com seu
inóspito deserto e a maior feira livre do mundo. Além da cidade de Lüderitz,
de onde Amir Klink deu a partida na travessia a remo do mar-oceano, como
relata em “100 dias entre céu e mar.” Tudo entrevemos com olhos imaginativos,
absorvendo em largos goles a beleza sem par do mar sem fim, o “mare magnum”
cujo extremo tanto temiam os navegadores de antanho.
Descansados, deixamos
de lado o último lanço de escadas que vai ainda mais acima e descemos pela via
asfaltada que vai encontrar a Estrada da Rainha. Subindo ao topo, iniciamos a
descida, tendo à frente a mole dos prédios que se elevam pela orla. A
proximidade afirmava que, ainda que parecesse incrível, estávamos em nosso
quarto.
___________________________________
(*) “Voyage autour de ma
chambre”, Xavier de Maistre, poeta francês (1763/1852), publicado em 1795.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(15 de agosto, 2017)
CooJornal nº 1.041
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.

|