Enéas Athanázio
MEU EX-AMIGO ESCRITO
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Segundo ele afirma, Pedro Albeirice da Rocha e eu nos correspondemos
durante 34 anos sem nos encontrarmos. Só no dia 30 de maio passado aconteceu
nosso primeiro encontro, quando ele passou um dia em minha casa e pudemos
conversar bastante. Assim, Albeirice deixou de ser um amigo escrito e passou
a ser um amigo falado.
Fluminense de Volta Redonda, doutor em letras,
professor de literatura e escritor, Albeirice é ubíquo. No longo período em
que trocamos cartas ele residiu em Tubarão, Chapecó, na Irlanda, em Malta,
na Bélgica, no Tocantins e não sei mais onde, fixando-se, por fim, em
Joinville, onde hoje se encontra e leciona na UFSC. É um globe-trotter que
vive espargindo ensinamentos literários por toda parte. Apaixonado por Santa
Catarina, o retorno definitivo está no seu horizonte.
Escreve sempre,
onde quer que esteja, e sua obra se estende por vários gêneros. É contista,
ensaísta, cronista, tradutor e poeta. Em rápidas pinceladas, procurarei dar
uma mostra de seu trabalho.
Como ensaísta, tem se debruçado sobre a
obra de Monteiro Lobato. “Esse gênio chamado Lobato”, “O paradoxo de
Monteiro Lobato” e “El fenómeno Monteiro Lobato”, este em espanhol, são
alguns de seus trabalhos dedicados ao criador do Sítio do Picapau Amarelo.
Observa ele que Lobato passou a vida toda advogando a simplificação da
língua, despindo-a de literatice, e, no entanto, sofreu forte influência de
Camilo Castelo Branco, por quem tinha verdadeira veneração. Apesar desse
paradoxo, enfrentou os defensores do rigorismo gramatical e conseguiu
dominar uma linguagem simples e direta, acessível a todos, em especial na
literatura infantil. Foi um renovador da linguagem. Como disse Nelson Palma
Travassos, Lobato começou camiliano e tertminou taubateano. Em outra
passagem analisa as relações conturbadas de Lobato com os modernistas,
agravadas pela crítica à pintura de Anita Malfatti. Embora classificado como
pré-modernista, não se integrou ao movimento modernista, ainda que Oswald de
Andrade o considerasse precursor do modernismo brasileiro. Como tradutor,
acentua o ensaísta, o grande mérito de Lobato foi aproximar a linguagem
literária das criaturas brasileiras que desejavam livrar-se do difícil
português europeu.
Na área do conto, destaco “Leandra”, narrativa
dramática em linguagem livre e solta; “Na ponte”, conto nostálgico enfocando
o encontro inesperado de dois amigos de infância, na calada da noite, sobre
uma ponte isolada, ouvindo-se apenas o marulhar das águas do rio;
“Neofarrapo” evoca as múltiplas guerras, maiores e menores, que fazem o
mundo sangrar.
O cronista se apresenta em “Crônicas do Tocantins e
outras viagens”, reunindo um punhado de textos escritos ao sabor dos
acontecimentos e dos eventos da vida do autor. Aqui ele revela que está
sempre com as antenas ligadas e atento para captar os temas cronicáveis e
transformá-los em belas peças literárias. Destaco a crônica “Lembranças
catarinetas”, sentida louvação ao nosso Estado.
Quanto ao tradutor,
merece realce o livro “El caso de ‘Mi planta de naranja lima’: literatura
brasileña infanto-juvenil traducida al español”, alentado ensaio acadêmico
desenvolvido em universidades estrangeiras. É um mergulho profundo na
difícil arte da tradução literária, desde as origens dos estudos sobre o
tema, os estudos existentes e as normas. Aborda as várias facetas do
assunto, inclusive o antigo debate sobre a possibilidade ou não da tradução
de poesia e as traduções para crianças. Esmiúça a técnica e a tática da
tradução e enfatiza a obra de José Mauro de Vasconcelos.
Ainda no
campo da tradução, como professor e orientador, realizou um trabalho que me
parece único. Propôs aos seus alunos o desafio de traduzir versos de Rudyard
Kipling, publicados em seus “Jungles Books”, em 1894 e 1895, relacionados
aos contos de Mowgli, o menino-lobo. Os jovens se entregaram à tarefa com
entusiasmo e o resultado está enfeixado no volume “Poemas a muitas mãos.”
Foi um trabalho de incentivo ímpar à leitura.
Em 2015 Albeirice foi
homenageado na I Coletânea “Viagens pela escrita”, publicada em Volta
Redonda por Poeart Editora e com a participação de inúmeros poetas de todo o
país. Em apêndice, uma súmula biográfica do escritor e suas realizações.
Para encerrar, uma pequena amostra da obra poética de Albeirice:
FLUMEN (*)
Cheiro de pequi, gosto de bacaba... Na cozinha,
mamãe prepara a panelada enquanto a lenha chora no fogão. Ai, esses
meninos que não voltam do rio! Cuidado, olha as arraias! Meus olhos,
petrificados de terror, ante as histórias de esporadas. ataques de
piranhas e abraços de sucuris. A mamãe não atinava o que eu, então,
já sabia: suas invenções eram fruto de um amor cuidadoso. A mamãe
se encontra ausente. mas o rio segue em frente, com suas alegres
arraias e suas afoitas piranhas. Mas, a sucuri que aperta, tem
outro nome: saudade. _________
(*) “O rio”, em latim.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(01 de agosto, 2017)
CooJornal nº 1.039
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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