Enéas Athanázio
LIMA BARRETO NA MEMÓRIA ALHEIA
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Camilo Castelo Branco, o genial romancista português, dividia os livros
em duas categorias: missal (grandes) e cartilha (pequenos). Pois acabo de
receber um missal de 810 páginas que me foi oferecido por José Ribamar
Garcia, renomado advogado trabalhista no Rio de Janeiro e escritor,
integrante da Academia Piauiense de Letras. O cartapácio contém a biografia
de Austregésilo de Athayde (1898/1993, jornalista, escritor e presidente da
Academia Brasileira de Letras (ABL) por longos anos. “O século de um
liberal” (Editora Agir – Rio – 1998), de autoria de Cícero Sandroni e Laura
Constância Sandroni, recupera a longa e movimentada vida de um dos mais
ativos jornalistas brasileiros, ligado ao grupo dos Diários Associados e,
por muito tempo, seu presidente.
Dentre as múltiplas personalidades
com quem conviveu, destaca-se o escritor Lima Barreto (1881/1922), de quem
foi amigo e confidente nos anos de juventude e que é evocado com saudade
inúmeras vezes. Desde moço, ainda preferindo os clássicos, ele já
manifestava franca admiração pelo escritor de Todos os Santos. “Apesar de
ler os escritores de seu tempo que a Igreja condenava, entre os quais o de
sua preferência era Lima Barreto, ele continuava admirando os que ainda
escreviam pelos cânones do século anterior” (p. 109). Essa admiração por
Lima Barreto perduraria por toda a vida.
Relata o jornalista que foi
visitar a redação do jornal “O País”, de João Lage, na esperança de obter
uma colocação. Na saída, deparou com Lima Barreto. Em conversa, fez
observações sobre “Policarpo Quaresma” e ele agradeceu. Mas, ao saber que o
jovem pretendia ser jornalista, disse o seguinte:
“- Não vale nada.
Ou se deixa para ser outra coisa ou se fica na miséria toda a vida. A menos
que você tenha talento de cavador... Quando quiser encontrar-me vá ao Café
São Paulo, por volta das cinco. Se eu não tiver chegado, espere, eu não
tardarei.”
Mais tarde voltou a encontrar o escritor e o conselho se
repetiu.
“- Não é negócio. Peça a seu tio um lugar de amanuense
nalguma repartição. Encaminhe-se para a Prefeitura ou à Central do Brasil.”.
O rapaz alegou que não tinha vocação para o serviço burocrático.
“- Asneira, rapaz, asneira - disse ele. – Não há nada melhor. É um ponto de
partida. Todo mundo aqui no Rio é ou já foi funcionário público. O Machado
passou a existência inteira mamando no Tesouro. O Bilac, o Neto, o Alberto
de Oliveira... Todo mundo...” (pp. 126/127).
Como se vê, Lima não
nutria nenhum apreço pelo jornalismo profissional. Talvez fosse uma reação à
maneira como fora tratado por um dos grandes jornais da época onde seu nome
era proibido. Também fica claro que o ponto de encontro dos dois, daí por
diante, seria o Café São Paulo.
Logo depois ele registra a
implicância de Lima Barreto com o futebol. Para o escritor, tratava-se de
uma “invasão inglesa em nossa cultura”, um jogo para brutos, a que ele
chamaria de “bolapé”, com visível sentido pejorativo.
Ao tomar
conhecimento de que o futuro jornalista havia pedido a Coelho Neto o
prefácio para um livro, Lima Barreto ficou irritado. “Prefácio que lhe
valeu, naquele mesmo ano, descompostura de Lima Barreto. Quando soube da
história, o escritor disse a Belarmino (*), muito irritado, que só um
cretino chapado pediria prefácio a Coelho Neto; e quanto a considerar-se
discípulo de Machado de Assis, não passava de grande estupidez” (p. 139).
Apesar dos arroubos limanos, que tolerava com paciência, sua opinião a
respeito dele era a mais positiva. “Os passadistas permaneciam voltados para
a forma, o verbalismo, o fraseado pomposo e a literatice; os novos, como
Lima Barreto, desde 1909, com a publicação de “Recordações do escrivão
Isaías Caminha”, anunciavam a presença de um espírito inconformista nas
letras brasileiras” (p. 140). Ele já antevia, em relação a Lima, o que a
grande crítica mais tarde consagraria.
Os encontros com Lima Barreto
continuaram.
Um deles aconteceu na esquina da Rua do Ouvidor com a
Avenida. “Com a barba por fazer, olhos injetados, roupa suja e em desalinho,
Lima mostrou-se paternal... Mas, ao saber que o rapaz conseguira um lugar
n’A Tribuna, comentou:
- É burrice meter-se num jornaleco. Você nem
parece nortista...” (p. 142).
Em outra ocasião, o aspecto de Lima era
desolador. O encontro foi no Café São Paulo e “Lima Barreto estava sentado
numa cadeira do fundo com as mãos entre as pernas e a cabeça pendendo. “
Nesse encontro, recomendou ao jovem que não ingressasse em rodinhas
literárias, com Coelho Neto e Paulo Barreto (nunca o chamava de João do Rio)
e o pessoal do Correio da Manhã.
“- Essa gente toda não presta para
nada e não bota ninguém para diante” – afirmou ele.
Falou mal dos
padres e da Igreja. Declarou que não gostava de Cruz e Sousa. Afirmou que
seguir Machado constituiria um erro e que “literatura só é genuína quando
nasce do povo” (pp. 142, 143, 144 e 145).
Lima Barreto já revelava a
decadência de seus últimos anos de vida, embora sua revolta continuasse a
mesma.
O livro prefaciado por Coelho Neto nunca foi publicado. Os
originais foram consumidos por um incêndio na editora, em Portugal.
Austregésilo travava uma polêmica com Antônio Torres, crítico severo e sem
papas na língua, quando voltou a se encontrar com Lima Barreto. Ele tornou a
aconselhar o jovem a deixar o jornalismo e entrar para o serviço público.
Afirmava que trabalho em jornal “só serve para os diretores” e “não dá nada
e tira tudo.” Depois declarou que havia lido um artigo de autoria dele e o
considerava grosseiro, tendo o autor do artigo informado que escrevera
quando estava irritado. “Quando estiver irritado, não escreva – respondeu o
escritor. – No ímpeto da cólera perde-se a noção da dignidade pessoal.” Em
seguida, informou que iria cedo para casa porque andava com dores de cabeça.
Recomendaram-lhe que mudasse de vida, disse, mas não pretendia mudar. O pior
que poderia acontecer seria morrer e, ainda que a ideia de morrer não o
agradasse, não tinha medo da morte. “Afinal, todos morrem.” Ao se despedir,
declarou: “Não dê importância às minhas impertinências. Sobretudo não me
tome nunca para exemplo...” (pp. 150/151/152);
Aproximando-se as
eleições, concorriam Epitácio Pessoa pela situação e Rui Barbosa pela
oposição. O jovem jornalista abraçou de pronto a candidatura do Conselheiro,
já derrotado em duas eleições anteriores. Mas o amigo Lima Barreto não
concordava: “Lima Barreto era contra os dois candidatos, especialmente
contra Rui, de quem discordava do estilo, da linguagem, do liberalismo, das
aspirações políticas e do papel que representara no começo da República. Nas
conversas no Café São Paulo exprimia seu desagrado em termos veementes...”
Para ele, ambos os candidatos eram ruins e Epitácio era ainda pior porque
sob o verniz do jurista estava o cangaceiro da Paraíba.
A posição do
escritor diante das duas candidaturas conservadoras não era de admirar.
Considerando-se maximalista e adepto de uma revolução social no país, Lima
não poderia abraçar qualquer delas. “Considerava a sociedade brasileira
preconceituosa e injusta, cheia de muitos vícios oriundos de nossa formação
lusitana. Precisamos botar tudo isso abaixo! – proclamava. Depois declarou
que tencionava mudar-se para a Rússia ou o Paraguai... (pp. 157/158).
“Na noite de Natal de 1919, - escrevem os autores – Lima Barreto foi
levado pela segunda vez para o Hospício Nacional de Alienados, na Praia
Vermelha, e submetido a tratamento com “purgativo e poção gomosa de ópio;
ali ficou até 2 de fevereiro de 1920. “Estou seguro de que não voltarei a
ele pela terceira vez; se não saio dele para o São João Batista, que é
próximo”, escreveria Lima mais tarde, em “Cemitério dos Vivos” (p. 159).
A saúde do escritor se agravava a olhos vistos em consequência do
reiterado alcoolismo.
Em 18 de janeiro de 1921. Austregésilo elogia
em artigo crítico o livro “Histórias e Sonhos”, de Lima Barreto. Este, em
carta, agradece: “Meu caro Dr. Austregésilo de Athayde. Saudações.
Agradeço-lhe muito a bondade que teve, dirigindo-me a carta aberta que A
Tribuna publicou em 18 último. Quisera saber dos termos da excomunhão que
mereci do padre-mestre Tadeu...” Estende-se para “definir certas posições
intelectuais” e por isso “deveria revestir-se de seriedade.” Indagado, mais
tarde, porque havia escrito de maneira tão formal, respondeu que não via
nada de formal, pois “precisava deixar aquele documento. Não foi para
agradecer nada... E ficou silencioso, com as pernas molemente cruzadas,
batendo com o dedo mínimo na mesinha... e então disse: - E não me chame de
mestre. Não pense que eu sou o Neto ou o João do Rio, que gostam de
discípulos, de encaminhar rapazes, de fazer escolas... E passou a insultar
com palavras grosseiras todas as igrejinhas literárias de então” (pp.
172/173).
Lembrando que Austregésilo era professor de Latim e Grego,
Lima Barreto comentou: “Aulas de latim... aulas de latim... Burrice estar
ensinando estas coisas aos meninos. Você ensinando latim, sabendo grego e
escrevendo n’A Tribuna acaba como o velho Ramiz Galvão...” E deu uma
gargalhada rouca, fechando a boca com a mão direita, num acesso de tosse.
Nesse ponto o jornalista fornece um retrato impressionante do escritor
naqueles dias. É um depoimento que nunca encontrei em biografias ou ensaios
sobre Lima e que vale a pena transcrever.
“Até que chegasse ao estado
de loquacidade que tornava tão agradável a conversa, - escreveu ele – Lima
Barreto atravessava um período de confusão, em que as palavras saíam
pastosas, interrompidas, e as frases sem sentido, Deixava pender a cabeça,
minutos seguidos, quase sobre os joelhos e, de quando em quando, a erguia
para uma exclamação insultuosa dirigida a pessoas ou coisas que não estavam
em causa. Era preciso ter paciência, ouvir sem réplica, esperar que o
mecanismo de seu espírito engrenasse na continuidade de pensamentos e
raciocínios, o que demorava algum tempo. Creio que o assunto surgiu na sua
plenitude quando falei de certo manifesto do Clarté, assinado por Anatole
France. À menção do nome, Lima Barreto encrespou-se e, como se ali eu
houvera proferido uma injúria enorme, impeliu-me com a mão insegura e aos
berros:
- Não me fale desse homem! É um falsário. É um castrado. Deus
tirou-lhe a força da criação. Um simples fazedor de bonecos, falando
parlapatices, tiradas dos filósofos da decadência grega, Admira-me que você,
um menino ainda com o cheiro dos cueiros, me venha aqui tomar esses ares de
desalento e mentiroso cansaço do mundo.
E enfático:
- De hoje
em diante não fale mais comigo – ordenou.
Mas como eu tinha de pagar
as despesas, aí por uns três mil-réis, voltamos às boas e saímos juntos rumo
à Central do Brasil, passando pelo Largo de São Francisco.
E,
enquanto andávamos, prosseguiu nos insultos contra aquele que era
considerado então o Patriarca da Literatura Universal, em substituição a
Tolstoi. Em certo momento ele voltou-se para mim e disse, entre irado e ao
mesmo tempo carinhoso, agressivo, mas tentando disfarçar a ternura pelo
jovem companheiro:
- Você, com esse Anatole na cabeceira, parece usar
sobrecasaca de desembargador de Minas no espírito e lenço de Alcobaça para
limpar o rapé.
Eu sorri da comparação, até porque achava que ele
tinha um pouco de razão. Também não adiantava responder a Lima Barreto, que
não escutava argumentos e cortava logo a pretensão do interlocutor de
contradizê-lo usando um vocabulário de pura inspiração rabelaisiana. A
verdade é que recebi um sacolejão nas minhas convicções de admirador de
Anatole. O primeiro, não porém o definitivo” (pp. 173/174).
Em 1921,
na revista Careta, Lima Barreto anunciava sua intenção de concorrer à
Academia Brasileira de Letras na vaga de João do Rio. “Sou candidato à
Academia. Creio que minha candidatura é perfeitamente legítima” – escreveu.
Mas em setembro retirou a candidatura “por motivos particulares e íntimos”
(p. 175). Lima jamais entraria para a Academia, mais por seu modo de vida
que pela cor da pele – dizem os críticos.
Relata, mais tarde, outro
encontro com Lima Barreto. “O melhor seria ir ao Café São Paulo para ver se
Lima Barreto ainda estava lá. O bar estava cheio de fregueses que haviam
tomado uma xicarazinha de café e ficavam horas conversando. A maioria falava
de futebol ou de corridas de cavalos. Alguns de política. Lima Barreto
estava sozinho, encolhido, com as pálpebras meio descidas. Cheguei perto do
escritor e saudei-o. Recebeu-me resmungando coisas ininteligíveis, com
enfado e evidente vontade de expulsar o intruso. Disse depois que assentasse
e mudou de humor. Lera um artigo meu sobre Coelho Neto e observou-me que
nunca vira tanta sandice em letra de forma.
- Quando é que vocês vão
compreender que o Neto não é literato?
Lima Barreto tinha raiva quase
irracional de jogador de futebol, e xingava os jogadores mais famosos.
Achava atitude imbecil assistir a onze sujeitos de um lado e onze do outro
procurando lançar uma bola a gol, e haja a dizer palavras candentes contra
os torcedores. Concentrava seu ódio em Coelho Neto, com quem, por motivos
literários, implicava e atribuía-lhe toda a culpa pela popularização e
prestígio das pelejas desportivas no Brasil.
Lembro-me que certa vez
achei que deveria contrariá-lo, defendendo Neto e o futebol. Exasperou-se,
cobrindo-me de invectivas. Como era do meu hábito, não lhe respondi, nem
valia a pena, pois Lima era irredutível nas suas ideias e preconceitos,
como, por exemplo, sua ojeriza a padres, frades e freiras, aos quais
atribuía todos os males do mundo.
Embiocava entre os braços, fechava
os olhos e ia distribuindo, entre dentes, descomposturas indiscriminadas.
Queria mudar-se para a Cochinchina. Entrecortava longos silêncios com
adjetivos contra o mundo em geral. Depois, levantava-se de súbito e
dizia-me:
- Paga aí essa despesa...” (p. 176).
Os conselhos de
Lima para o jovem jornalista escrever num grande jornal calaram fundo e
desde então começou a batalhar por isso.
Quanto ao futebol e os
esportes em geral, Austregésilo estava mais para Coelho Neto que para Lima
Barreto. Gostava da vida ao ar livre, dos banhos de mar e das caminhadas
pela areia da praia, ao contrário dos literatos em geral. Acompanhava os
campeonatos e até chegou a ser confundido com célebre jogador de futebol (p.
179). Creio, porém, que não teria coragem de confessá-lo a Lima Barreto.
Num dos últimos encontros com Lima Barreto, no Café São Paulo, o
escritor falou:
“- Você anda por aí com o Graça, o Ronald e com
outros malucos e beócios. Então você ficará burro e safado!
E repetiu
com voz cada vez mais sumida os dois últimos insultos” (p. 188).
Nas
suas conversas, o jornalista conjeturava sobre a Semana de Arte Moderna,
cujos ecos agitavam os meios culturais. “Parecia-nos que da destruição dos
valores antigos surgiria a linha de renovação e da autonomia literária do
Brasil, especialmente nas obras de Lima Barreto, Adelino Magalhães e
Monteiro Lobato” (Idem).
No dia 1º. de novembro de 1922, justamente
no ano da Semana, falece Lima Barreto. Tinha 41 anos de idade. “Os arquivos
de Austregésilo de Athayde não guardam qualquer artigo ou nota sobre a morte
de Lima Barreto. Na coleção d’A Tribuna, na Biblioteca Nacional, faltam
exatamente os exemplares de 2 a 5 de novembro de 1922, dias em que
possivelmente Athayde escreveu sobre o seu companheiro de conversas no Café
São Paulo” – dizem os biógrafos (p. 196).
Muitos anos depois, Athayde
relatou que Lima Barreto e Artur da Costa e Silva conviveram por algum tempo
no Hospital Central do Exército, onde o escritor consertava uma clavícula
partida. Nessa ocasião Costa contava piadas e casos pitorescos, amenizando
os dias de hospital. Lima o considerava inteligente e culto para a idade.
Indagado sobre quem era o Costa de quem falava, o escritor respondeu:
- Ora essa! O Costa é o Costa e não adiante você saber quem é...” Só
mais tarde o jornalista entenderia de quem se tratava (pp. 598 e 599).
Para encerrar, registro um ensaio de Arnaldo Niskier, publicado em
importante revista de cunho cultural (**), sob o título de “Lima Barreto, o
defensor do tupi-guarani.” Nele o ensaísta acentua que a literatura
afro-brasileira é um conceito em construção em nosso país e que a obra de
Lima Barreto não faz parte do programa de nenhum curso de letras. A “cidade
letrada” continua fechada para ele como foi em vida.
___________________________
(*) Na juventude,
Austregésilo era tratado como Belarmino. Seu nome completo era Belarmino
Maria Austregésilo Augusto de Athayde. (**) “Revista do Historiador”,
publicação da Academia Paulista de História, S. Paulo, Vol. 181, p. 30.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(15 de julho, 2017)
CooJornal nº 1.037
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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