Enéas Athanázio
NO TEMPO DOS REDUTOS
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A chamada Guerra do Contestado (1912/1916) tem despertado o interesse de
inúmeros pesquisadores e conta hoje com volumosa bibliografia. Creio, no
entanto, que ainda não surgiu uma obra unificadora, fornecendo uma visão
geral e completa dos acontecimentos. Talvez isso aconteça em virtude da
grande extensão do território onde se desenrolaram as hostilidades (cerca de
28.000 km2),
da longa duração do conflito e dos inúmeros locais em que ocorreram
combates. Diante disso, as informações são esparsas, colhidas em numerosos
livros e outras publicações, dificultando uma visão de conjunto. Nem sempre
os relatos coincidem, encontrando-se contradições, omissões e discrepâncias
difíceis de explicar. Alguns dos livros publicados, no entanto, fornecem
informações minuciosas sobre determinados episódios omitidos em outras
obras, permitindo preencher muitas lacunas.
Entre estes, destaca-se
“Da cidade santa à corte celeste: memórias de sertanejos e a Guerra do
Contestado”, de autoria de Delmir José Valentini, publicado pela
Universidade do Contestado – UnC (Caçador – 2003). Professor dessa
Instituição e pesquisador na área da História, o autor realizou um trabalho
modelar, baseado em vasta bibliografia e valorizando as buscas in loco,
entrevistando numerosas pessoas, algumas delas participantes dos
acontecimentos ou seus descendentes, além de moradores antigos da região.
Graças à história oral, obteve informações inéditas ou pouco conhecidas,
enriquecendo sobremodo seu trabalho.
O livro é dividido em cinco
capítulos: Cenário e Protagonistas, A Igreja e a Crença, Redutos da Fé,
Personagens e Adeodato e o Crepúsculo. No capítulo de abertura o autor
descreve o palco dos acontecimentos, sua geografia, fauna e flora, a
extração da erva-mate e tudo mais. Examina a situação dos moradores da
região, em grande parte caboclos sertanejos submetidos ao despotismo dos
latifundiários, entregues à pobreza e ao abandono, sobrevivendo com
dificuldade num clima hostil. Sustenta suas observações em manifestações
escritas e orais, inclusive de militares e participantes diretos dos
eventos. Vale-se, ainda, de seu perfeito conhecimento pessoal da região.
No capítulo seguinte aborda a decisiva influência exercida pelos dois
monges que peregrinaram pela região, João Maria Agostini e João Maria de
Jesus, em especial a deste último, cujas pregações calaram fundo no coração
dos sertanejos. Mostra como, aos poucos, o catolicismo rústico foi superado
pela crença na Santa Religião dos redutos, o relacionamento entre os padres
franciscanos e os monges e a atmosfera de misticismo que envolveu o
Planalto. Descreve, em seguida, a entrada em cena do monge José Maria,
curandeiro que se apresentava como irmão de João Maria Agostini e que
pereceu no chamado Combate do Irani, no dia 22 de outubro de 1912, sendo
sepultado em cova rasa para facilitar sua prometida ressurreição à frente do
exército encantado de São Sebastião. Fornece curiosos dados biográficos do
monge e reafirma que seu nome era Miguel Lucena de Boaventura, hoje posto em
dúvida por outros pesquisadores.
Talvez o mais interessante do livro,
o terceiro capítulo aborda os principais redutos ou cidades santas onde se
reuniam os revoltosos, a vida dentro deles, suas práticas, hierarquia,
orações e tudo mais, a forma de arrecadação de alimentos, vestuário, armas e
munições. Taquaruçu, nas proximidades de Fraiburgo, Caraguatá, em Perdizes
Grandes, Bom Sossego, Caçador, Santa Maria (Timbó Grande), São Miguel e São
Pedro são descritos com suas localizações, organização interna, chefes,
quadros santos, sem faltarem as virgens santas e os meninos que
“conferenciavam” com o monge. É um conjunto de informações difíceis de serem
encontradas.
O capítulo IV se ocupa dos personagens. O primeiro a
aparecer é “Dom” Manoel Alves de Assumpção Rocha, sagrado imperador
constitucional da Monarquia Sul Brasileira, em agosto de 1914, quando
circulou uma carta à nação, espécie de Constituição, a ele atribuída.
Curandeiro simplório, que andava descalço e com as calças arregaçadas pelas
canelas, analfabeto, conhecido como Mané Rocha, o episódio aparenta ser uma
troça e a autoria da Constituição, segundo li em algum lugar, seria de um
Promotor Público. Seja como for, a coroação não vingou, e a participação do
“imperador constitucional” foi efêmera e apagada. Chica Pelega e Maria Rosa
também entram em cena, reforçando a presença feminina. Dentre os
comandantes, avultam as figuras de Venuto Baiano (Benevenuto Alves de Lima),
sobre quem pouco se sabe, mas que foi “comandante de briga” e chefiou o
ataque a São João dos Pobres, hoje Matos Costa. Natural da Bahia, de origem
italiana, teria sido marinheiro e desertou durante a Revolta da Armada, em
abril de 1894, em um porto catarinense, segundo afirmou Vinhas de Queiroz.
Olegário Ramos, Agostinho Saraiva, Henrique Wolland, Aleixo Gonçalves de
Lima, Antônio Tavares Júnior, Bonifácio José dos Santos (Bonifácio Papudo),
Conrado Grober e Francisco Alonso de Souza (Chiquinho Alonso) são outras
figuras de relevo cujas personalidades e atuação são examinadas.
O
último capítulo descreve o período final da revolta e a queda dos redutos
diante das forças oficiais. Foi o reinado de Adeodato Manoel Ramos, cujo
verdadeiro nome era Joaquim José de Ramos, mais conhecido como Leodato.
Governando o reduto com mão de ferro, suas atrocidades teriam sido
inumeráveis. Resistiu até o fim, embrenhando-se nas matas, até que foi
aprisionado, faminto, molambento e desesperado. Numa desastrada tentativa de
fuga da penitenciária de Florianópolis, depois de ter sido condenado, foi
morto pelo coronel Trujilo de Melo. Adeodato teria implantado verdadeiro
regime do terror durante seu comando e inspirava no povo humilde um misto de
medo e admiração. Foi o último jagunço.
A leitura do livro sugere
algumas observações. A primeira se prende ao monge João Maria Agostini, o
primeiro. Pesquisas posteriores conseguiram rastrear seus passos. Saindo do
Brasil, percorreu a América Central e foi ter nos Estados Unidos, onde teria
sido morto por índios selvagens no estado do Novo México. No local, segundo
consta, foi erigido um marco registrando seu falecimento. É impressionante
como ele andou! A segunda observação se refere a Chiquinho Alonso. Segundo
alguns autores, ele chefiou o ataque a Calmon, no dia 5 de setembro de 1915,
quando teria entre 16 e 17 anos de idade. É uma informação que não fecha com
o que se lê neste livro. Antes desse ataque ele já fora comandante de um
reduto, sendo pouco provável que fosse tão jovem.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(1º de julho, 2017)
CooJornal nº 1.035
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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