Enéas Athanázio
ANIVERSARIANTE ILUSTRE
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Fundada em 11 de fevereiro de 1932, a Faculdade de Direito de Santa
Catarina completou 85 anos de existência. Criada por inspiração do
professor, desembargador e escritor José Arthur Boiteux (*), foi a primeira
escola de Direito em nosso Estado, embora não tenha sido a primeira de nível
superior. Funcionava, no início, à rua Felipe Schmidt, em dependências que
ficavam sobre a célebre “Confeitaria do Chiquinho” e, mais tarde, foi
transferida para sua sede própria, à rua Esteves Júnior, número 11, onde
funcionou por longos anos até ser instalada no campus da Trindade, integrada
à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o estranho nome de
Centro de Ciências Jurídicas, denominação inexplicável, uma vez que as mais
tradicionais Faculdades de Direito do País conservaram o nome antigo.
Exemplos são a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, as “Arcadas”,
em São Paulo, e a Faculdade de Direito do Recife, ambas conservando o nome
original mesmo após todas as peripécias de nossa história. Seria a troca de
nome uma forma de escamotear o passado contestador e polêmico da velha
Faculdade? Funcionou por vários anos como escola particular e depois
estadual, embora houvesse o pagamento de mensalidades por parte dos alunos,
ônus que só foi extinto com a federalização.
A Faculdade de Direito
tem formado inúmeras gerações de bacharéis desde sua turma inicial, muitos
deles ocupando posições de relevo na vida pública como advogados,
magistrados, integrantes do Ministério Público, policiais, políticos,
professores, escritores, jornalistas etc. Tive a sorte de frequentá-la em um
dos melhores momentos de sua existência, entre 1955 e 1959, ainda na
vigência da Constituição Federal de 1946, a mais democrática das Cartas
brasileiras, que garantia o amplo debate de todos os assuntos sem os medos e
receios que o regime autoritário viria a instalar no seio das universidades.
Fui aluno de professores de primeira linha, inesquecíveis, e tive colegas do
maior destaque na vida profissional, parte deles pontificando até hoje em
suas múltiplas atividades. Sempre ligados no que acontecia no Estado e no
País, os acadêmicos discutiam, protestavam, sabatinavam candidatos,
criticavam e aplaudiam. Nossas assembléias, ainda que acaloradas,
constituíam exemplos do espírito democrático vigente entre os estudantes,
muito diferente da alienação e do desinteresse com que me deparei, mais
tarde, como professor em duas universidades.
O ambiente da Faculdade
vivia em permanente ebulição. Cursos de extensão universitária eram
constantes e sobre os mais variados temas. Ao longo do Curso, frequentei
pelo menos uma dúzia deles. Júris simulados também aconteciam. Num deles
funcionei como Promotor de Justiça, tendo como assistente de acusação meu
colega de turma Telmo Marengo. Em outro, tempos depois, servi como jurado.
Houve júris sobre assuntos não-criminais, como a construção de Brasília, um
dos grandes temas da época. Por inacreditável que seja, havia forte oposição
à construção da nova Capital e as discussões a respeito costumavam ser
furiosas. Conferencistas de fora, alguns de grande renome, compareciam com
frequência, pronunciando suas palestras no salão nobre com suas cadeiras de
palhinha. Graças a isso, conheci muitos expoentes da cultura nacional,
jurídica ou não. Nelson Hungria em campanha pela comutação da pena de morte
de Caryl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha, sem resultado; Nelson Carneiro
em sua incansável luta pela adoção do divórcio; Mozart Victor Russomano,
luminar do Direito do Trabalho; Darcy Azambuja, doublé de cientista social e
escritor regionalista; Buys de Barros, notável economista; Ataliba Nogueira,
expoente do Direito Tributário; Plínio Salgado, eterno candidato a
presidente da República; Carlos Lacerda, o célebre orador padre Godinho,
Roland Corbisier, o criminalista José Bonifácio de Andrada, Pedro Calmon,
magnífico reitor da Universidade do Brasil, Andrés Daglio, conferencista
uruguaio, Osny Duarte Pereira, Dagoberto Salles, Benjamim de Oliveira, Josué
de Castro e sua luta contra a fome, o processualista Galeno Lacerda, o
folclórico criminalista Mário Jorge, tantos e tantos outros que a memória
não reteve. Entre os grandes eventos da época, lembro-me da realização da
Semana Nacional de Estudos Jurídicos, em 1957, reunindo em Florianópolis o
melhor dentre acadêmicos e professores. No concurso nacional de oratória,
nessa ocasião, destacou-se o então acadêmico Norberto Ulysséa Ungaretti, em
magnífico discurso, e que perdeu a primeira colocação por insignificante
diferença em julgamento muito questionado. Os concursos para a cátedra e a
livre-docência, expondo ao público os conhecimentos dos candidatos a
professores, também despertavam grande interesse. Assisti a alguns
memoráveis.
Dentre os mestres, começo por evocar Othon D’Eça, tanto
pela ligação pessoal como pela afinidade com o escritor. Nos tempos em que
residiu em Campos Novos, minha cidade natal, ainda solteiro, tornou-se
grande amigo de meu pai e jamais o esqueceria. Sempre que me encontrava, na
rua ou nos corredores da Faculdade, abraçava-me com efusão, exclamando:
“Parece que estou vendo o José ainda mocinho!”, referindo-se a meu pai.
Professor de Direito Romano e homem de vasta cultura, era irrequieto durante
as aulas, gesticulante, movimentado, descendo e subindo no estrado onde
ficava a mesa. Apaixonado por Eça de Queiroz, bastava mencionar o escritor
luso para que se desmanchasse em comentários. Suas aulas eram ministradas
aos sábados à tarde, em dia e horário inacreditáveis, mas a maioria dos
alunos marcava presença. Sobre ele muito tenho escrito e prefaciei seu livro
“...Aos espanhóis confinantes!”, edição de suas Obras Completas, publicadas
pela FCC.
Inesquecível também é Joaquim Madeira Neves, talvez o mais
popular entre os alunos, sempre em meio a um círculo deles. Professor de
Medicina Legal, tinha uma erudição espantosa e suas aulas nos deixavam
embasbacados. Osmundo Wanderley da Nóbrega, magistrado sério e circunspeto,
mestre de Direito Civil respeitado pelo grande conhecimento, embora um tanto
arredio e de pouca conversa. Creio que foi o pioneiro no estudo e na
aplicação da obra de Pontes de Miranda aqui no Estado. Severino Nicomedes
Alves Pedrosa, pernambucano que jamais perdeu o sotaque, magistrado e
professor de Direito Civil, pragmático nas lições e irônico nas respostas.
Edmundo Acácio Moreira, modesto, quase humilde, mas que parecia reter todo o
Direito Civil na cabeça, citando dispositivos, teorias e decisões de
memória, sem recorrer a anotações. Luna Freire, professor de Direito
Processual Civil, também sábio na sua matéria, conhecendo-a tanto no passado
como na atualidade. João Bayer Filho, político e professor de Direito Penal,
um artista na gesticulação e na impostação da voz. Alcebíades Valério
Silveira de Souza, mestre de Direito Internacional Público, conhecedor
profundo da matéria e que guardava na cabeça, como que desenhado em traços
fortes, o complicado mapa geopolítico mundial. Atualizado como poucos,
abordava qualquer fato novo que eclodisse no mais recôndito do Globo.
Abelardo de Assumpção Rupp, mestre de Direito Comercial, pessoa de rara
bondade e por isso muito querida. João David Ferreira Lima, professor de
Ciência das Finanças, lutador incansável pela federalização e diretor da
Faculdade. José do Patrocínio Gallotti, apaixonado socialista, e Pedro de
Moura Ferro, sempre indignado com as injustiças do mundo e os entraves da
burocracia. Ferreira Bastos, nosso iniciador nos meandros do Direito Penal,
Renato Barbosa, mestre de Direito Internacional Privado, tantas vezes
irritado com as urzes do caminho, Telmo Vieira Ribeiro e suas lições de
Direito Constitucional. Henrique Stodieck, mestre de Direito do Trabalho,
como tal respeitado em todo o País. E outros, muitos outros, inclusive os
mais jovens que lecionaram por pouco tempo e talvez por isso não deixaram
maiores marcas. Todos, porém, contribuíram para a formação de verdadeiros
profissionais e são credores de nosso reconhecimento. Não fui aluno de
Henrique da Silva Fontes, já aposentado, embora tenha assistido a várias de
suas palestras.
Com colegas de turma e contemporâneos em geral também
mantive um relacionamento muito rico e agradável. Entre os primeiros, vem-me
à memória a figura de Telmo Marengo, creio que o mais inteligente de todos.
Questionava os professores, em pé, com argumentação perfeita e, às vezes,
colocando-os em dificuldades. Costumava ir à minha pensão, à noite, e ficava
caminhando entre as camas, no quarto onde eu dormia, gesticulando e falando
como quem procurava convencer. Bem humorado, ria com facilidade e gostava de
relembrar fatos engraçados que havia presenciado. Henrique Gabriel Botelho
Berenhauser, estudioso como poucos, leitor incansável, foi outro de meus
companheiros ao longo de todo o Curso. José de Brito Andrade, simpático e
alegre, tornou-se renomado criminalista. Luiz Henrique Baptista, muito
amável, místico, sempre conversando com Deus, com quem parecia manter
relações muito chegadas. Yara Coelho de Souza, sempre na nossa roda, grande
colega e amiga. E outros, muitos outros, embora esses fossem os mais
próximos, aqueles que ficaram para sempre na lembrança.
Com estas
desalinhavadas, registro minha homenagem à nossa provecta Faculdade,
proclamando mais uma vez – como tantos outros ex-alunos – que não concordo e
não gosto do atual nome. Para nós, ela será sempre a Faculdade de Direito de
Santa Catarina.
_______________________________ (*) Apesar de sua
importância na vida pública e na literatura catarinense, José Arthur Boiteux
não tem merecido maior destaque. A “Enciclopédia de Literatura Brasileira”,
de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, dedica-lhe algumas magras linhas,
e o mesmo faz o “Dicionário Literário Brasileiro”, de Raimundo de Menezes. A
“Enciclopédia Brasileira Globo”, tão rica em temas nacionais, nem sequer o
menciona. Sua sobrevivência se deve aos pesquisadores locais, como Celestino
Sachet, Lauro Junkes e Iaponan Soares. Por mais que indague, nunca consegui
saber o destino do busto do Fundador que havia diante da Faculdade.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(15 de junho, 2017)
CooJornal nº 1.033
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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