Enéas Athanázio
CONTRACENANDO COM A PARKA
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Segundo a mitologia, Parkas eram as três deusas que presidiam os
destinos humanos, fiavam e cortavam o fio da vida. Uma delas, em momento
inexorável, o cortava com uma tesoura. Era tão poderosa que o próprio
Júpiter não podia interferir nessas decisões fatais. Costuma ser
representada como uma mulher muito velha e feíssima, portando uma foice ou
gadanho com que ceifa as vidas humanas. Em sentido figurado é a própria
morte.
A morte é um fenômeno que guarda um segredo indevassável, uma
vez que não se sabe o que acontece depois dela, ensejando especulações
intermináveis, gerando teorias e crenças, religiões, hipóteses e filosofias.
Numa concepção materialista, é o fim da existência, a ruína, o retorno ao
pó, razão pela qual é o que existe de mais temido pelos seres humanos em
geral, exceto por aqueles que, por variadas razões, a procuram de forma
espontânea.
Mas existem os que a encaram de maneira fatalista e sem
revelar temor, permanecendo frios e lúcidos mesmo nos momentos cruciais em
que a morte pode ocorrer a qualquer instante. Como ela é inevitável, tratam
de conviver com a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, ela chegará, mesmo
porque, como dizia Otto Lara Resende, é a única entidade incorruptível que
existe. Agem como se estivessem contracenando com uma companheira vitalícia
no palco da vida. Entre estes casos creio que se enquadra o do escritor
gaúcho Nelson Hoffmann, autor de obra ponderável, professor e advogado,
ocupante de cargos destacados e que acaba de publicar o livro “Companheira”
(Editora Furi – Rio Grande do Sul – 2017), crônica impactante de um
acontecimento que o marcou de maneira profunda e deixou indelével memória.
Estava ele no seu gabinete de trabalho, na luta diária pelo cumprimento
das tarefas, quando foi acometido de um enfarte no qual se recusou a
acreditar. Mesmo padecendo de cruciantes dores, insistia em prosseguir na
labuta até que foi forçado a se converter à realidade para ser conduzido até
em casa e depois ao hospital onde foi submetido a uma delicada cirurgia.
Mesmo nos momentos decisivos, no entanto, manteve impressionante lucidez,
tudo observando como se não fosse com ele e até mesmo fazendo troça da
situação. Só se entregou quando perdeu os sentidos ou, como diria mais
tarde, a partir do instante em que se considerou morto: apaguei, morri.
A cirurgia foi bem sucedida e ele voltou de onde não se volta, embora
submetido a cuidados decisivos, entre eles a categórica determinação de
mudar de vida. Começa então uma nova fase existencial a que, por força, tem
que se adaptar. É imperioso deixar de lado as preocupações, esquecer o
trabalho, a luta pela vida, a difícil escalada pela realização profissional
e pessoal. “É a nossa condição humana – escreveu. – A real consciência dessa
nossa condição humana perturba, sim. E valoriza a vida.” A dura fase da
reeducação forçada é relatada nos derradeiros capítulos. Começa a prestar
atenção naquilo que nem sempre a correria cotidiana permitia ver. A
pequenina formiga que lhe pica o pé, o céu azul e sem nuvem, as árvores do
jardim-pomar-bosque, os pássaros, a brisa suave que cochichava: eu sou. E a
vida recomeça, agora em nova etapa, com outra visão, mas sempre ao lado da
morte porque, como ele afirma, “a morte é minha companheira, ensina-me a
viver...”
É um livro emocionante, perturbador, didático. É um alerta
para que não se peça ao corpo mais do que ele pode dar. Não esquecer jamais
de que a Parka está atenta e a qualquer momento poderá cortar o fio.
Nelson Hoffmann é dono de um estilo próprio e inconfundível. Suas frases são
curtas, enxutas, às vezes telegráficas. Como Baudelaire, deixa a impressão
de que acaricia cada uma das palavras para que ela se encaixe com perfeição
como a peça de um mecanismo muito preciso. No seu texto não existem palavras
superabundantes, mas também não se constatam vocábulos ausentes. O diálogo é
seu ponto mais forte: contido, sumário, muitas vezes deixando a conclusão
por conta do leitor, mesmo porque é intuitiva. Vislumbro em seus diálogos
algo de Hemingway.
E já que lembro o mestre de “O sol também se
levanta”, encerro dizendo que o livro de Hoffmann se enquadra nos rígidos
critérios que ele exigia para a boa literatura: a verdade e a precisão.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(1º de junho, 2017)
CooJornal nº 1.031
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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