Enéas Athanázio
O ROMANCE DA VIDA No correr do teclado
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O escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899/1961) não admitia a
hipótese de ser biografado em vida ou até mesmo nos cem anos após sua morte.
Impediu pelos meios ao seu alcance as tentativas de vários autores nesse
sentido. Preferia ser empalhado por algum texidermista a ser mumificado num
texto biográfico, dizia ele. Não obstante, tem sido um dos escritores mais
biografados da moderna literatura universal, inclusive no Brasil. Algumas
dessas biografias são parciais, retratando apenas certas fases de sua vida,
e outras têm propósito mais ambicioso, reconstituindo todos os passos de sua
existência. Dentre estas últimas, a mais completa e minuciosa de todas é
“Ernest Hemingway, o romance de uma vida”, de autoria de Carlos Baker,
publicada entre nós pela Editora Civilização Brasileira, em tradução de
Álvaro Cabral (Rio de Janeiro – 1971). É um imenso volume de 640 páginas e
com muitas ilustrações, algumas delas bastante raras.
O livro
descortina diante do leitor uma vida extraordinária, vivida na plenitude, de
um homem que se dedicou à literatura de maneira integral e com apurada
consciência profissional. Foi uma existência ativa ao extremo, com
incontáveis viagens, safáris africanos, caçadas e pescarias sem conta, a
prática constante de esportes, a paixão pelas touradas, a cobertura de
guerras, o gosto pelas comidas picantes e por generosas doses de bebidas. Um
homem múltiplo, complexo e contraditório, que alternava momentos de absoluta
tranqulidade com outros de descontrolada ira, às vezes falastrão ou entregue
ao mutismo, tímido e fanfarrão, amigo generoso ou provocador e brigão. Acima
de tudo, porém, disciplinado no trabalho, ao qual se dedicava todos os dias,
em qualquer situação, na reclusão de seu gabinete, sem falar com ninguém ou
estabelecer contato com quem quer que fosse e por motivo algum. Entrega
total ao ato de criar, tarefa que sempre considerou difícil.
Nascido
em Oak Park, nas proximidades de Chicago, teve uma infância livre e
aventuresca, pescando, nadando, remando e excursionando pelo Meio-oeste
americano, fase da qual guardaria saudades e lhe valeu a inspiração para
muitos escritos, além da criação do personagem Nick Adams, seu alter-ego.
No período escolar já escrevia para periódicos colegiais e se dedicava à
prática de esportes, inclusive o futebol, para o qual era muito desajeitado,
e o box, paixão que o acompanharia por toda a vida. Para desgosto do pai, o
médico Clarence Hemingway, não quis ingressar na faculdade e passou algum
tempo borboleteando em publicações para as quais escrevia, entre elas um
jornal de Toronto, onde se exercitou no jornalismo, experiência que lhe
valeria muito no futuro. Mas a I Guerra Mundial rugia na Europa e ele
sonhava em participar dela de alguma maneira, “para ver a guerra por
dentro.” Contrariando o desejo paterno, tentou se alistar como voluntário
mas foi sempre rejeitado em virtude de um defeito na vista. Inconformado,
procurou outra saída e conseguiu ser recrutado como motorista de ambulâncias
da Cruz Vermelha Americana na Itália. Depois de algum tempo nessa função,
dirigindo um pesado veículo Fiat, passou a abastecer as cantinas do fronte,
levando cigarros, chocolates e lanches para os soldados em combate. E nessa
atividade, numa noite infeliz, sofreu gravíssimos ferimentos.
Nessa
altura Hemingway já era uma figura querida nos campos de batalha e a notícia
de seus ferimentos teve intensa repercussão. Pedalando na sua bicicleta, ele
conduzia um suprimento de chocolates e cigarros para os soldados. Encostou a
bicicleta, colocou um capacete e ingressou nas trincheiras. A noite estava
quente, abafada, como que de mau augúrio, e os bombardeios inimigos haviam
durado o dia todo. Pela meia-noite um projétil inimigo explodiu como um raio
nas proximidades. A explosão começou branca e acabou vermelha – diria ele
mais tarde. Meio atordoado, respirou fundo e tentou entender o que havia
acontecido. Dois soldados estavam caídos; um deles, imóvel, parecia morto, e
o outro gemia sem cessar. Ernest não pensou duas vezes, ergueu o ferido
sobre os ombros e começou a galgar a colina em direção ao posto de primeiros
socorros. Quando estava a meio caminho, uma descarga de metralhadora o
atingiu em ambas as pernas. Sentiu o impacto e o sangue quente escorrer
sobre a pele. Mas não interrompeu a marcha e, sem saber como, chegou ao
posto com o soldado ferido, momento em que desmaiou. Foi a 8 de julho de
1918, em Fossalta, nas proximidades de Milão.
Apesar das dificuldades
e da demora no atendimento, foi conduzido ao hospital militar de Milão, onde
foi submetido a várias intervenções para recolocar o joelho no lugar,
extrair as balas alojadas nas pernas e no pé e os incontáveis estilhaços que
penetraram em suas pernas. O tratamento foi excelente, embora a recuperação
fosse lenta. Tinha na ocasião 19 anos de idade. No período da internação
ocorreu outro fato que o marcaria para sempre, talvez mais até que os
próprios ferimentos. Conheceu uma enfermeira alta e loira, de nome Agnes
Hannah von Kurowsky, um pouco mais velha que ele, pela qual se apaixonou.
Ela parecia retribuir ao seu amor e o rapaz já se considerava noivo, certo
de que se casariam. Quando, afinal, teve alta e retornou aos Estados Unidos,
percebeu que era uma celebridade, cultuado como herói. Recebeu duas
condecorações por atos de bravura. Apoiado numa bengala, coxeando,
envergando bela capa italiana, foi assediado pela imprensa ao desembarcar.
Vive, a seguir, um período incerto, sem um rumo a tomar. Faz palestras
sobre suas experiências na guerra, excursiona pela região, se entrega a
pescarias e caçadas, escreve muito. Sonha em retornar à Europa, fugindo do
ambiente provinciano de sua cidade, por ele considerado sufocante. Têm
início as desavenças com a mãe que perdurariam por toda a vida. Num dia
sinistro, chega uma carta de Agnes rompendo o namoro. Apanhado de surpresa,
Ernest sofreu como nunca e desejou a morte, tomado pelo desespero. Ela havia
se apaixonado por um oficial italiano, de família nobre, com quem pretendia
se casar. Mais tarde se soube que a família orgulhosa vetou o casamento,
considerando-a uma aventureira americana em busca de um título de nobreza.
Desconsolada, ela tentou reatar com Hemingway, mas ele, orgulhoso como era,
não acedeu.
Nessa fase conhece uma moça de nome Elizabeth Hadley
Richardson, também um tanto mais velha, por quem se apaixona. Contrariando
mais uma vez a família, que o julgava muito moço, casou-se com ela. Hadley
seria a primeira de suas quatro esposas, mulher compreensiva e que muito o
estimulou na realização de sua obra. Ele cultivaria remorsos e saudades por
tê-la deixado durante a vida inteira.
Influenciado pelo escritor
Sherwood Anderson, famoso na época, o casal decidiu se fixar em Paris onde
havia considerável quantidade de americanos expatriados. Lá se instalaram,
vivendo uma vida mais que modesta e que ele, nos seus escritos, exagerou ao
extremo. Travou contato com Gertrude Stein e sua companheira Alice Toklas,
James Joyce, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, John dos Passos, Ford Madox
Ford, Pablo Picasso, a livreira Sylvia Beach e numerosos escritores, poetas
e artistas. Frequentou com assiduidade as corridas de cavalos e de
bicicletas, lutas de box, bares e cafés. Fez muitas viagens, inclusive como
correspondente de jornais, além de pescarias, caçadas e temporadas em
estações de esquis. Escreveu e escreveu. Datam desse período suas primeiras
publicações. Tomou conhecimento das touradas, através de Stein e Picasso,
das quais se tornou aficionado e passou a visitar a Espanha por ocasião das
“fiestas”, o que faria pela vida a fora. Tornou-se muito popular entre os
aficionados das touradas, toureiros, treinadores e pessoas a elas ligadas.
No período vivido em Paris apurou a escrita, publicou em periódicos e
lançou seus primeiros livros. Visitava o Louvre para contemplar as obras de
Cézanne, afirmando que desejava fazer com as palavras o que ele realizava
com as tintas. As memórias dessa fase foram registradas no livro “Paris é
uma festa.” Também foi nessa época que nasceu seu primeiro filho, John
Hadley Nicanor Hemingway, o Bumby. Conheceu Pauline Pfeiffer, jornalista,
pela qual se apaixona e que acabou determinando o rompimento com a primeira
esposa e o subsequente divórcio. Casou-se com Pauline, com quem teve dois
filhos: Patrick e Gregory. Sempre desejou mas nunca teve uma filha.
Durante a Guerra Civil espanhola foi para a Espanha como correspondente de
guerra. Instalou-se no Hotel Flórida, em Madri, a pouca distância da frente
de combate. Colocou-se desde logo ao lado dos legalistas e contra os
rebeldes de Franco, intuindo que aquela guerra seria a preparação para a
grande carnificina que viria. E não estava enganado. Entre suas múltiplas
reportagens, entrevistou Mussolini, convencendo-se de que ele era o maior
blefe da política mundial de então.
No tempo passado na Espanha,
entre estrondos de granadas e o matraquear das metralhadoras, escreveu sua
única pela teatral, “A Quinta Coluna.” Segundo relatou, escondia os
originais nas dobras do colchão enquanto fazia suas incursões pelos campos
de batalha. Passou a conviver com Martha Gellhorn, uma loura muito bonita,
jornalista corajosa e escritora, o que determinou o rompimento e o divórcio
de Pauline. Martha se tornaria sua terceira esposa.
Alternando entre
Key West e a Finca Vigia, em San Francisco de Paula, nas proximidades de
Havana, publicou outros livros e se transformou numa celebridade no mundo
literário. Com a eclosão da II Guerra Mundial, rumou para a Europa, como
correspondente de guerra. Embora fosse proibido, como jornalista, de tomar
parte em ações bélicas, lutou de armas na mão e até comandou um grupo de
voluntários de diversas nacionalidades. Segundo consta, ele e seus
provisórios entraram em Paris, no dia da libertação, antes mesmo das tropas
do general Leclerc, para isso designado pelas forças aliadas. Chegando a
Paris, sua primeira providência de ocupação foi “libertar” a adega do Ritz
Hotel e nele se estabelecer por direito de conquista. Submetido a
investigação por suas ações guerreiras, não foi punido e recebeu os maiores
elogios pela bravura que demonstrou. Durante a guerra armou seu barco
“Pilar” para atacar submarinos alemães na Corrente do Golfo, mas não teve
sucesso.
Finda a guerra, entregou-se a viagens sem conta, várias
delas à Espanha para assistir a touradas, assunto em que se tornou
especialista e sobre o qual publicou um livro. Fez dois safáris à África e
no segundo deles sofreu dois acidentes aéreos na mesma viagem, dos quais
saiu com numerosos e graves ferimentos. A notícia de sua morte correu mundo
e ele se divertia com os necrológios publicados na imprensa. Durante toda a
vida foi perseguido pelos mais estranhos e inesperados acidentes, alguns
deles bastante sérios.
Voltando à Finca Vigia, divorciou-se de Martha
e casou-se com Mary Welsh, sua quarta e última esposa, a quem chamava de
Miss Mary. Com a publicação de “O velho e o mar”, recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura mas, por razões de saúde, não foi receber em pessoa.
Quando tudo parecia em paz, começou a apresentar indícios de alterações
psíquicas. Manifestava receio da polícia, do imposto de renda e dizia sofrer
perseguições e ameaças. Foi internado em segredo em clínicas especializadas
nas quais mostrava um comportamento dúplice: diante dos médicos parecia
normal mas em família revelava todos o sintomas. Recebendo alta da clínica,
ato que Mary considerou grave erro, retornou para casa, agora em Ketchun. E
lá, à noite, descobriu a chave do porão onde ficavam as armas. Apanhou sua
espingarda preferida, municiou-a com dois cartuchos, encostou-a na testa e
apertou o gatilho. Tinha 62 anos de idade.
Um homem que tanto amou a
vida, por ironia do destino, matou-se de madrugada quando gozava da fama de
um dos maiores escritores do século.
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A
OBRA DE ERNEST HEMINGWAY: “Em nosso tempo” “O sol também se levanta”
“As ilhas da corrente” “O verão perigoso” “Adeus às armas” “Morte
ao entardecer” “Por quem os sinos dobram” “Ter e não ter” “A quinta
coluna” “Do outro lado do rio, entre as árvores” “O jardim do Éden”
“Paris é uma festa” “Torrentes da primavera” “O velho e o mar”
“Verdade ao amanhecer” “As verdes colinas de África” “Ernest Hemingway
repórter – Tempo de viver” “Ernest Hemingway repórter – Tempo de morrer”
Contos (Volumes I, II, III)
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(1º de maio, 2017)
CooJornal nº 1.027
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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