Enéas Athanázio
“VIDA OCIOSA”: ALGUMAS NOTAS
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Depois de muito tempo, reli o romance “Vida Ociosa”, de autoria do escritor
mineiro Godofredo Rangel (1884/1951). Foi o livro de estreia do autor,
lançado em 1920, com o selo da Revista do Brasil, de Monteiro Lobato & Cia.
Editores. Trazia como subtítulo “romance da vida mineira”, retirado nas
edições posteriores.
Edgard Cavalheiro afirmou, mais tarde, que o
livro teve pouca aceitação. Monteiro Lobato, porém, discordou de seu futuro
biógrafo e mais de uma vez enfatizou o valor literário da obra rangelina.
“Indubitavelmente – escreveu ele – foi este livro a obra-prima do ano, e
tempo virá em que o juízo unânime da crítica, em coincidência admirável com
o juízo unânime do público, o coloquem entre a meia dúzia de obras supremas,
formadoras da cúspide da literatura nacional.” E, em outra passagem: “O que
assombra neste livro é a perfeição absoluta de fatura, coincidindo com a
perfeição absoluta de ideação, circunstância feliz que faz da “Vida Ociosa”,
em meu humilde parecer, o único livro nosso que, embora de gênero diverso,
possa ser colocado numa estante entre “Brás Cubas” e “D. Casmurro.” Poderão
dizer que se tratava de opinião de amigo, mas Lobato exalava sinceridade e
seu parecer não foi isolado.
Com efeito, em artigos, cartas e
manifestações diretas, aplaudiram o romance: Adalgiso Pereira, Ricardo
Gonçalves, Augusto de Lima, Moacir Deabreu, J. A. Nogueira, João Pinto da
Silva, Tristão de Athayde, Arthur Neiva, Graça Aranha, Ronald de Carvalho,
Silva Ramos, Raul Vergueiro, Antônio Cândido, Hilário Tácito, D. Antônio de
Almeida Morais Jr., Mário Matos, João Dornas Filho, Guilherme de Almeida,
Breno Ferraz, Antônio Salles, Alphonsus de Guimarães Filho, Rodrigo M. F. de
Andrade, João Alphonsus, J. Guimarães Menegale, Benjamin de Garay e B.
Sanches Sãez, estes dois últimos de Buenos Aires.
Além desses, vale
recordar o julgamento de Fernando Góes: “Seu livro de estreia – “Vida
Ociosa” – romance da vida mineira, foi considerado no tempo (1920) e é
considerado ainda hoje uma obra-prima. É o ponto alto de sua literatura.”
Fernando Sales, com apoio em Wilson Louzada, vai na mesma linha. Antônio
Cândido, ainda que aprovando, coloca “Os Bem Casados” em plano superior.
Uma voz solitária se elevou no Rio Grande do Sul, discordando dessas
opiniões. Wilson Martins, na sua “História da Inteligência Brasileira”,
publicada em 1978, fez referências desfavoráveis ao escritor mineiro. Em
tempos mais recentes, Guido Bilharinho foi na mesma direção.
Mesmo na
aceitação dos leitores o livro foi bem recebido. A edição se esgotou em
pouco tempo. É claro que sua vendagem não poderia se comparar com a das
obras de Lobato, o escritor mais célebre e lido de seu tempo. A importância
dessa obra, lançada há quase um século, me parece indiscutível e sua leitura
encanta até hoje. É pena que só tenha merecido uma nova edição em
inexpressiva brochura e sem uma divulgação adequada. Poucas bibliotecas,
pelo que tenho observado, dispõem do livro em seus acervos.
“Vida
Ociosa” reflete o viver monótono de um magistrado interiorano ou de “um juiz
em termos sertanejos”, como dizia seu autor. Obra de memorialista, de fundo
autobiográfico, embora fugindo às posições e poses tão próprias do gênero. A
narrativa é suave e permeada de um humor leve. Evidencia-se nela o visível
conflito entre o juiz sem vocação aparente e o escritor ansioso por produzir
mas que se vê diante de “um gordo processo de embargos” que jazia sobre a
mesa e exigia sua atenção. Registra o desabafo da vítima da doença literária
assoberbada pelo trabalho do juiz: “Serviço até o pescoço. É uma enchente de
autos. Essa atmosfera de petições e arrazoados produz-me, como a pasmaceira
habitual, efeito desalentador. As impertinências dos advogados, longe de me
espicaçar o brio, tiram-me até a coragem de levantar a pena empoeirada da
mesinha de trabalho. E já entreouço à volta um zum-zum de descontentamento
que me turba o farniente. Preciso fugir, cobrar um pouco de vitalidade para
enfrentar com valentia os desgostosos...” A solução é escapar para o meio
rural, para os sítios da região, em especial para o Córrego Fundo, onde é
recebido com rapapés e salamaleques pelos moradores, e lá colher impressões
com que encher laudas e laudas. E assim se desenvolve a narrativa, tranquila
como o próprio autor, trabalhada, segura, límpida, composta com calma, sem
premências de tempo ou preocupação com críticos e leitores.
O
capítulo inicial é um poema em prosa. A estradinha coleante, ora se
aproximando, ora se afastando do rio de águas barrentas, é vista com os
olhos do pintor exímio no uso das tintas e contido nas cores esmaecidas. “Um
resto da melancolia da noite” paira no ar da manhã na saída do povoado que
ainda dorme e o viajante afunda em velhas recordações imprecisas. A velha
porteira, na sua envergadura rude de largos tabuões horizontais, emite um
rangido prolongado e sonoro que o eco reproduz ao longe. Nasce um sol
radioso e sob a soalheira escaldante o viajante prossegue e com mais um
estirão avista a fazenda do destino – o Córrego Fundo.
Não tarda a
reconhecer o Américo, encarapitado sobre um cupim, a investigar o horizonte
na busca do visitante tão esperado. É o filho solteirão de Próspero e Siá
Marciana, os fazendeiros, com pretensões a professor e estudioso das
ciências. Saudado com efusão, o viajante suarento, é conduzido para o
casarão em ruínas mas amplo e acolhedor. Então é um Dr. Félix para cá, Dr.
Félix para lá, culminando-o de rapapés, doces, comidas e guloseimas. Com seu
incansável arrastar de chinelos, Siá Marciana vai da sala para a cozinha na
preocupação constante de bem tratar o visitante. Próspero, já idoso, relata
histórias de caçadas e pescarias enquanto conserta as redes danificadas
pelos jacarés. Siá Marciana trata as galinhas com punhados de grãos de milho
e Américo questiona sobre os mistérios do reino científico. Na sua placa,
dormitando, o velho papagaio mal entreabre os olhos. As horas escoam lentas,
sons difusos vêm dos fundos, da horta, do pomar e do terreiro enquanto o
visitante relaxa, distende os músculos, alivia a cabeça. É verdade que às
vezes o acode o remorso de ter deixado o serviço sem férias ou licença. Não
demora a aparecer o José, aluno único de Américo, para a aula do dia. O
menino aprendia com surpreendente rapidez, ainda que reagisse a pedradas
quando o chamavam de Zé Correto, alcunha que abominava.
Próspero
recorda uma caçada nada heróica em que ele e os companheiros se deram mal.
Trepados num jirau, à beira de um barreiro em que os animais vinham lamber o
chão salitroso, aguardavam a chegada da onça pintada. Mas o jirau desabou e
com ele os caçadores que tiveram que fugir através da mata inceira,
apavorados, na escuridão da noite. E o velho narrador gozava de si próprio
num riso pesado de sarro. Sucediam-se incontáveis casos de outras caçadas e
pescarias que o Dr. Félix ouvia com intenso prazer.
No silêncio da
sala penumbrosa “um ulular remoto encheu a calma da noite com seu lúgubre
ecoar. – Que significa esse uivo, Sr. Próspero? perguntei. Fazendo um gesto
vago, o velho respondeu: Não sei. A mata é misteriosa. Pode ser um pio de
ave noturna ou o urrar de uma fera. Há certos sons indecifráveis, mesmo para
os que estão familiarizados com a vida nas brenhas. Daí as superstições, a
crença no sobrenatural, tão comum entre os rústicos...” O silêncio recai
na varanda onde todos rodeavam uma bacia de brasas como que hipnotizados
pelo lume. E o tempo corre lerdo, macio, sem cuidados e atropelos.
Sobrevém a chuva violenta, as bátegas tamborilando no telhado e nas paredes.
O chão vai aos poucos sugando a água e o pátio se transforma num lodaçal. A
natureza ressequida parece reviver; o gramado, as árvores, a mata, tudo
reverdece. Surgem visitas inesperadas escapando da intempérie. Mas o sol
ressurge, o céu retoma seu azul anilado e os viventes, humanos e animais, se
reanimam ao frescor da tarde.
Próspero organiza excursões a que Dr.
Félix adere a contragosto. A cavalo, visitam a fazenda de Nhô Quim Capitão
que, entrevado na cama, anseia por notícias dos conhecidos e do mundo. Vão à
cachoeira onde a piracema acontece e tanto peixe enche os balaios a ponto de
enojar. Vem à memória a sina triste do sentenciado Lourenço, momento mais
alto do livro, revivida de forma impactante. Moído pelos ciúmes, em momento
de desvario, ele comete um crime de morte por amor à mulata Frederica.
Condenado a trinta anos de prisão, conta e reconta os dias, os meses e os
anos da pena, ajudado pelo carcereiro, já transformado em amigo. Mas tudo na
vida tem um fim e um dia a reclusão termina. Avelhantado, doente, rengo duma
perna e troncho duma orelha, ganha a liberdade. “Ei-lo trôpego, aturdido
pelo ar livre e espaço desempeçado, buscando, em terras longes, o paradeiro
da mulata. É o último anseio pela felicidade.” Anda e anda, pergunta,
indaga, procura, investiga. Estradas sem fim se afunilam no horizonte,
curvas tortuosas sobem pelas coxilhas e descem pelas canhadas, e o sonho de
reencontrar o amor da juventude parece cada vez mais remoto. Mas vai que um
dia, num rancho à beira-chão, chega ao ponto que lhe indicaram. Num esforço
para reentrar no presente grita o “Ô de casa!”
Frederica assoma à
porta. Está gorda, maltratada pela vida, tem os cabelos nevados. Nem de
longe lembra a morena elegante e sensual de outrora. Ela o contempla de
longe. Boas tardes. – diz ele em voz cava. – Boas tardes! – responde ela. A
mulher o observa sem dar mostra de reconhecer. Você é a Frederica? – indaga
com receio. Sou, responde ela Recai um silêncio pesado. Observam-se
longamente. Convidado a entrar, ele senta numa tripeça, atiça o fogo do
cachimbo e começa a baforar. Antão você é o Lourenço? – inquire a mulata.
Sou, responde o visitante num jeitão tristonho. Alarido de crianças ecoa no
terreiro chamando-o à realidade. Você mora com homem? – pergunta Lourenço.
Com o Martinho – informa ela. – Tenho onze “famílias” dele... O pensamento
dele esvoaçou frouxo para a prisão, relembrando tanta espera, tanta
paciência, tanta resignação. A vida sabia-lhe amarga. Enquanto estava na
prisão o mundo dava suas voltas, tudo mudava e remudava. Não havia mais o
que fazer ali. O Martinho é bom sujeito? – ainda perguntou. Bebe, às vezes.
Do mais não tenho queixa. A vida é dura. Adeus – murmurou ele. Adeus,
Lourenço, respondeu ela. “Guardou o cachimbo, retomou a trouxa e o bordão, e
afastou-se, trôpego, paciente, rebocando a custo a perna enferma, como um
casco desarvorado, sem rumo, toando ao léu...” Nem um queixume, uma
reclamação, um indício de revolta. Fora, o sol dardejava e o calor o
enlaçou. A estrada se estendia ao infinito entre curvas sinuosas que levavam
para longe, longe, longe.
Não obstante, a vida no Córrego Fundo
continua e os dias escorrem para o poço sem fundo do tempo. Tudo acontece
devagar. Siá Marciana “opera” o papo do frango Manequinho, atravessado por
um graveto; a gata da estima, lanuda e confiada, aparece em busca de afagos;
Américo dedilha a sanfona e sons algo desafinados enchem o ambiente;
Sontonho, cego de um olho, ocupa-se do engenho e da farinha. Insiste em
presentear o visitante com dois polpudos sacos do produto preparado com
grande zelo.
Mas Dr. Félix necessita voltar ao trabalho. Afinal, é
juiz e deve retomar as inquirições, os despachos e as sentenças, enfrentando
o rábula chicaneiro que vivia espiolhando seu trabalho na busca incessante
de falhas, senões e nulidades. Que fazer se não voltar ao batente e
enfrentar com coragem a luta cotidiana. E assim, levando acavalados na
garupa da montaria os sacos de farinha, entra no povoado. Sente-se ridículo
aos olhos dos passantes que o observam com curiosidade em virtude de tão
estranha carga.
E sobrevém o epílogo humano e comovente. Dias depois,
numa visita surpreendente, surgem no foro os moradores do Córrego Fundo.
Trazem pequeno presente, acondicionado em elegante caixinha. É um anel
valioso, adquirido com as moedas que o juiz lhes deixava em paga da
hospitalidade. Foram guardando, em segredo, para comprar a jóia valiosa.
Emocionado, Dr. Félix nem sabe como agradecer o gesto espontâneo daqueles
seres rudes na aparência mas humanos no coração. “Retiraram-se, por fim.
Tornando ao escritório, retomei o estojo e contemplei melancolicamente a
jóia coruscante de rebrilhos, calculando comigo o quanto de privações e
amarguras se condensariam naquela cercadura chispante e naquela gota de
sangue mineralizado. Em vez da festiva alegria com que os pobrezinhos
contavam, com que aperto de coração eu recebia a sua dádiva!”
Para
compensar, obteve para o Américo a criação de uma escola e sua nomeação como
professor, realizando um sonho há muito acalentado. “E foi um nunca acabar
de mútuos agradecimentos...”
Como observou José Afrânio Moreira
Duarte, “Vida Ociosa” é o retrato do hinterland mineiro de corpo e alma. Ali
estão a geografia, a paisagem, a natureza, os usos e costumes, a linguagem e
as figuras humanas com seus cacoetes e sua fala característica. É um quadro
perfeito, traçado pela mão de mestre de fino observador.
Desde 1977 –
quarenta anos! – venho sustentando uma cruzada para reerguer Godofredo
Rangel e retirá-lo do injusto ostracismo. Perdi a conta das ocasiões em que
pesquisei, escrevi e falei sobre ele. Devo reconhecer que o resultado tem
sido pífio mas ainda alimento a esperança de que surja um editor corajoso
que reedite suas obras completas, em caprichados volumes, e com ampla
divulgação em todo o país. Será demonstrado, então, que a justiça literária
também pode demorar mas não costuma falhar.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(15 de abril, 2017)
CooJornal nº 1.025
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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