Enéas Athanázio
ANHANGUERA
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A estação ferroviária era o coração da Vila. Prédio retangular,
construído em madeira de lei, tinha extensas abas no telhado, para a frente
e os fundos, de forma a cobrirem a plataforma de pedra-ferro e as pessoas
que nela se encontravam. Diante dela estacionavam os trens que trafegavam
pela chamada Linha Sul, entre eles o misto que vinha do norte, pela manhã, e
o que retornava do sul, à tarde. Nesses horários, boa parte da população
deixava seus afazeres e se dirigia à estação para acompanhar a passagem dos
trens. Constituíam as oportunidades diárias de encontrar conhecidos,
inclusive entre os passageiros, ver caras estranhas e até mesmo comprar
jornais e revistas do jornaleiro do trem. Naquelas escalas a Vila se agitava
por alguns minutos antes de recair no silêncio e na mesmice normais. Em
passos lentos, as pessoas retornavam às suas atividades, algumas
conformadas, outras invejando no íntimo os que viajavam em direção a outras
paragens. A estação se esvaziava e nela só permaneciam o agente, o
telegrafista e algum eventual desocupado.
Numa manhã vazia, durante
as férias de internato, eu me encontrava na estação. Não me lembro o que
fazia, mas, com certeza, procurava a companhia de algum amigo. Foi então que
um trem se anunciou, apitando para os lados do norte, e as rodas martelaram
nos velhos trilhos de aço, quando margeava a Pirambeira, e o eco respondia
nas encostas rochosas da serra. Em pouco tempo a composição entrava na longa
curva de acesso à Vila e estacava resfolegante diante da plataforma. O
maquinista, viajando sozinho, travou a locomotiva e foi conversar com o
agente da estação, entrando na sua sala. Enquanto isso, a máquina permanecia
fumegando tranquila, à espera de seu condutor.
Tratava-se de um trem
singular e não recordo de ter visto outro igual. Compunha-se de uma pequena
locomotiva, de número 235 (número que se gravou para todo o sempre na minha
memória), e um único vagão cargueiro, rumando para o sul. Presumo que
transportasse algo de muito valor ou importância para justificar um
deslocamento tão caro. Mas, enquanto eu matutava no assunto, o maquinista
saiu da sala e se dirigiu à locomotiva para prosseguir na viagem. Foi então
que me ocorreu a ideia de pedir-lhe uma carona e viajar com ele até a
estação seguinte, Anhanguera, distante cerca de doze quilômetros. Para minha
surpresa, ele concordou e eu embarquei, acomodando-me no banquinho destinado
ao foguista que, no caso, não havia. E foi assim que realizei uma das
viagens mais pitorescas de toda minha vida e da qual nunca esqueci, ainda
que decorridos tantos anos.
Durante o trajeto conversei muito com o
maquinista, de nome Lino, mas ele não revelou o conteúdo do misterioso vagão
solitário. Com incrível agilidade ele abastecia a fornalha, retirando com
rapidez as achas de lenha do tender, de modo a abrir por curto espaço de
tempo a porta arredondada. Na passagem pude observar lugares conhecidos,
agora vistos de outros ângulos, fazendas onde o gado pastava, lagoas cujas
águas refletiam a luz do sol, plantações de várias cores, a mata verdejante
e o mar de pinheiros cujas copas ainda farfalhavam, antes da chegada
devastadora das serrarias. Por fim o pequeno trem encostou na estação de
Anhanguera e eu saltei, depois de agradecer ao maquinista. O telegrafista,
rapaz conhecido, ficou espantado com minha aventura e sugeriu que retornasse
no misto da tarde. Eu, porém, preferi voltar a pé.
Decidido, pus o pé
na estrada, pisando nos dormentes, e iniciei a caminhada de retorno.
Caminhar sobre dormentes é cansativo porque eles são mais próximos entre si
que a distância normal do passo, de modo que em alguns trechos caminhei ao
lado dos trilhos, quando havia espaço. Cruzar pontes e pontilhões também
assustava; não tinham soalho e eu avistava a água pelos vãos, lá em baixo.
Para espantar a solidão ou, talvez, o medo, entoava alguns cantos
desafinados, declamava versos ou ensaiava discursos para um público
inexistente. No interior dos profundos cortes por onde corriam os trilhos os
sons ganhavam um tom lúgubre.
Foi com intenso alívio que avistei,
afinal, o Corte do Agrião, indicando que chegava aos limites da Vila.
Satisfeito comigo mesmo, ainda que cansado, relatei a aventura a umas poucas
pessoas e houve até quem duvidasse. Eu não havia me preocupado em obter uma
prova da insólita jornada. Que fazer diante do ceticismo humano?
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e.atha@terra.com.br
(1º de abril, 2017)
CooJornal nº 1.023
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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