Enéas Athanázio
A NOVELA DA NOITE
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Obra do acaso. Conversando com um livreiro de Montevidéu, ilustrado em
literatura uruguaia, o editor Nicodemos Sena entrou em contanto com a obra
de Francisco Espínola, inédita no Brasil. Indagando sobre o título mais
adequado à publicação entre nós, o livreiro apontou para o romance “Sombras
sobre a terra”, lançado em 1933, e considerado pela crítica uma das mais
valiosas produções do romance uruguaio. Empolgado, o editor brasileiro, num
ato de arrojo e coragem, publicou o romance pela sua Editora Letra Selvagem
(Taubaté – 2016), em criteriosa tradução de Erorci Santana e com
esclarecedoras palavras de Ronaldo Cagiano. Uma edição pioneira, colocando
diante do leitor brasileiro um escritor quase desconhecido por aqui.
Francisco “Paco” Espínola (1901/1973) nasceu no povoado de San José de Mayo,
foi um contestador da ditadura uruguaia da sua época e amargou por algum
tempo na prisão. Segundo depoimentos, foi uma pessoa autêntica e verdadeira,
escrevendo com absoluta sinceridade, “como sincera foi a sua vida.”
“Sombras sobre a terra” é escrito em estilo muito pessoal e característico,
com formações engenhosas, frases que apenas sugerem e sem preocupação
cronológica rígida. Muitas manifestações ficam em suspenso para que o leitor
as complete. E o texto é inteiriço, compacto, sem divisão em capítulos ou
partes. Exige atenção do leitor; é preciso ler-estudando para bem apreender
suas nuances.
O romance se ambienta num meio insólito como poucos
outros da literatura latino-americana. Seu cenário é o Baixo, ou seja, o
meretrício da pequena cidade, contrastando com o Centro, onde vivem as
pessoas “sérias”. Segundo alguns, seria a rua Rincón, - a das luzes
vermelhas, - onde se movem seres que não são mais que sombras sobre a terra.
Nos prostíbulos e botecos das cercanias se cruzam e entrecruzam as
prostitutas, seus amantes, fregueses, “maridos”, namorados, músicos, gigolôs
e boêmios de todos os naipes. Uma fauna notívaga, nada afeita à luz solar,
que vive e age na obscuridade, quando muito sob o luar. Ali as mulheres
exercem a mais antiga das profissões com total naturalidade, parecendo
conformadas com seu trágico destino. Reina entre elas uma surpreendente
solidariedade, como acontece por ocasião do suicídio de uma delas e em
outros momentos críticos. Às vezes explodem paixões, enrabichamentos,
ciumeiras e choros, mas tudo acaba aplacado com doses da generosa cachaça
que corre solta. O autor mergulha fundo na psicologia das chamadas mulheres
da vida fácil, analisando o que pensam e sentem ao se submeterem aos
caprichos e à luxúria dos clientes. Creio que ele foi um grande boêmio e
muito observou dessa vida marginal, não legalizada mas tolerada como uma
espécie de mal necessário. O ambiente rústico e pobre é pintado de relance,
debuxado sem maiores detalhes. De tempos em tempos o silêncio do Baixo é
violado pelas badaladas do sino da igreja, como se o Centro advertisse de
que as pessoas sérias estavam atentas. Nesse meio obscuro se impõe o
personagem Juan Carlos, moço rico e respeitado, convivendo com uma dolorosa
angústia existencial.
“Sombras sobre a terra” se insere entre os
romances gauchescos, embora sem heróis e caudilhos. Mas não faltam uma
eleição e sua campanha, com cabos eleitorais, falações apaixonadas,
perseguições, violência e cadeia, embora seja um momento isolado da
narrativa. Por outro lado, o campo aberto está sempre à vista, o vento
cortante, o céu límpido, o cavalo, as vestimentas típicas, o poncho, o
xiripá, o pala, as esporas. A cuia do mate corre de mão em mão, como os
lisos de boa pinga (que imagino branquinha). E ali, enquanto o comércio do
corpo acontece, escoam as prosas lentas e pausadas dos gaúchos que entram,
cumprimentam com pontas de dedos, e se abancam pelos cantos à luz
bruxuleante das lamparinas e os que saem arrastando as esporas no retinir
das rosetas. Lá fora os galos cantam, cachorros acoam, o umbu folhudo
farfalha e a manhã se anuncia no horizonte, alertando que é hora de encerrar
o “expediente.”
Tudo, sem tirar nem por, como nos meus Campos Gerais,
que parecem desenhados diante dos olhos com espantosa nitidez. Mais uma vez
concluo que nós, latino-americanos, somos todos iguais, feitos de idêntico
material.
Comentários sobre o texto podem ser enviados ao autor, no email
e.atha@terra.com.br
(15 de fevereiro, 2017)
CooJornal nº 1.017
Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
Balneário Camboriú - SC
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